Pedra fundadora

É o que tem fazermos expurgo nas nossas bibliotecas: que damos com escondidas alfaias entre as covas que são as estantes. Dizemos a palavra justa e abrem-se caminhos para nós nos dirigir ao lombo abandonado de um velho volume. Neste caso, a edição, na clássica coleção Xabarín, da primeira proposta dirigida a público juvenil de Mª Xosé Queizán. E entramos no livro com a sensação de chegarmos tarde, com o medo de encontrá-lo vetusto, inçado de enrugas e guedelhas esfianhadas a dificultar a leitura. Mas não. No fundo das páginas amareladas brilham com fulgor uns olhos literários. E enredamos na leitura, e avançamos nela, embarcamos com Lazo nas terras de Tule, navegamos o mar na sua embarcação com cabeça de dragão, atendemos aos sábios discursos de Sensatanai, tememos a Caverna do Tesouro, apavoramo-nos com as donas das Ilhas Lobeiras e arribamos a Findasol, terra prometida, sem lhe sentir desaqueloutros à narrativa. Entra O segredo da Pedra Figueira na categoria de clássico. Junta a qualidade da escrita com a capacidade para acolher múltiplos referentes culturais através da história de uma meninha que cresce, de um povo que foge. A autora cria um universo fantástico com referentes a elementos do nosso mundo muitas vezes marginais: muda a orientação dos mapas e coloca o espaço de comunicação entre o norte da Europa e a Galiza costeira; desatende mitologias bíblicas para acolher as nórdicas em mistura com as autóctones; tira protagonismo aos druidas para lho dar às sábias; escolhe a uma rapariga como protagonista; oferece-nos a aventura de quem perde em troca da epopeia das vencedoras. Porque o conto é mesmo assim: as escassas sobreviventes de uma razia assassina decidem fugir e ver de fazer nova vida em terras ignoradas. No caminho, viagem atlântica por mar temido, vamos sabendo do seu mundo, do seu passado, dos seus costumes. Queizán consegue criar uma atmosfera verossímil, que podemos associar a espaços reais mais que ela leva a um tempo mítico, sem necessidade de grandes explicações. Artelhada como narrativa de aprendizagem, acompanhamos à protagonista no seu descobrimento do mundo, nas suas dúvidas e medos, na sua necessidade de carinho e alegria, na observação sistemática que faz de quanto a rodeia. Lazo, a espelida, a curiosa, a ousada, a sensível. E o melhor da obra, o final. Porque só no fim aprendemos, com Lazo, que neste mundo sempre temos a possibilidade da escolha.