O além e o aquém

Em muitas casas da minha infância, no comedor das festas, nesse com entrada proibida fora o dia sinalado, presidia a parede principal uma reprodução, tapete ou pintura, de cervos e arvorados e fontes; mesmo lembro ter visto algum com o banquete e a donzela seteada. Os cervos como pureza, como sabedoria natural, como regeneração cíclica de floridas cornaduras. E a lenda da rapariga metamorfoseada em cerva, e o amante virado casual caçador, acidental assassino. Aldara e a lenda do cervo branco / Inés Vázquez / Demo Editorial / 2021 / 140 páxinas / 20 euros Esta é a base que utiliza Inés Vázquez para desenvolver a trama da sua banda desenhada. Numa aldeia, que podemos situar na montanha lucense, em tempos outros, dá-se ao tempo a aparição de um meninho perdido e a morte violenta de animais. O rapaz, Aras, é acolhido pola família de Aldara, a cativa que dá com ele no monte, em quanto são localizados os seus responsáveis. Ele dilata as pescudas com informações falsas, pois tem uma conta pendente no bosque. Aldara deve escolher entre confiar no novo amigo e ajudá-lo ou fazer seguidismo da panda do seu irmão, que acusa ao Aras de ser quem está a arrasar a aldeia. Aldara e a lenda do cervo branco exige uma leitura atenta. A narrativa dos quadrinhos completa a dos balões de diálogo. Abundam as vinhetas mudas, em que a ação está representada só nos desenhos. É utilizada a cor de fundo para marcar saltos temporais ou espaciais, verdes e ocres para a aventura de Aldara e Aras no aquém, roxos e violetas para o além, branco azulado para prólogo e epílogo. Porém, essa exigência às leitoras acompanha-se de uma estória pola que avançamos cómodas, de surpresa em suspense e de solução em resolução. Como se cornamenta de cervo fosse, da estória principal nascem ramas e subtramas que recolhem elementos da tradição oral, das narrativas de aventuras, das pelejas entre irmãos, da fatalidade da morte, do acidentado da vida. A construção em modo realista do quotidiano numa aldeia montanhesa nos inícios do século XX ajuda a acreditar nos elementos sobre-naturais da história. O melhor, esse cervo branco, guardião do Além, quem em nada se imita com o Bambi açucarado e inocente da Disney, mas todo o contrário. Impressionam as suas feições quando faz aparição no final do volume, muito mais achegado a um cavalo apocalíptico que a um unicórnio. Se algo aprendemos da aventura de Aldara é que, como as avelainhas noturnas, a morte nos acompanha, queiramos ou não, no nosso caminhar polo mundo. Entre o além e o aquém, boas estórias em BD.