A maldição da irmã pequena

As que somos as segundas, e conformes, de uma réstea de irmãos e irmãs, sabemos bem da maldição da irmã pequena: mirai por Carmela; se ides, tendes que levá-la; faz-lhe ti a cama, que ela não sabe; dá-lhe a merenda, atende a que acabe; desculpa-a, não sabe que rabunhar manca… Por isso agradecemos este clássico de Astrid Lindgren, que nos coloca no lugar da outra, Lotta ou Carmela, tanto tem, e faz que percebamos que a maldição era ser a pequena, não tê-la de banda. Lotta tem um irmão, Xonás, e uma irmã, Mía-María, ambos grandes, mais grandes do que ela. Kalandraka junta em um só volume dous livros com Lotta como protagonista. No primeiro é Mía María quem exerce de narradora. Para mim, é o melhor dos dous: Mía María vai contando as parvadas de meninha pequena da irmã, ri das suas ocorrências inocentes, do infantil que é, do mal que percebe o mundo, e nosoutras podemos rir duplamente porque a maneira de contar de Mía María revela as suas próprias parvadas, a sua própria inocência, os seus erros na perceção do mundo, o infantil que, também ela, é. A voz narradora está absolutamente lograda: em realidade parece a de uma meninha que já vai à escola e já sabe ler e ir sozinha aos recados e que acredita que o pai acredita que as crianças sumiram em um roupeiro. Mía María enreda-se contando as parvadas de Lotta como enredaria qualquer cativa. Nesse enredar mostra para quem lê a maneira de ser de uma criança de quatro anos: as perrenchas inexplicáveis, o desejo enorme de ser grande coma as demais, a obsessão com os palavrões, o ódio às mamãs e aos jérseis que picam, o amor incondicional à pelúcia eterna. As adultas que rodeiam Lotta e irmão e irmã são as que quiséramos para qualquer criança: oferecem liberdade e atendem como se fossem verdade -que não são- as decisões libertárias das meninhada. Na segunda parte (segundo livro) uma narradora externa narra a aventura de Lotta fugindo da casa, incomodada com a mãe. Foge para o prédio da vizinha e esta acolhe-a em segredo fingido, e aluga-lhe um faio, e organizam um fogar. E toda a a família desfila de visita animando-a a voltar mas respeitando a decisão de abandonar a casa matriz. Porque a perrencha de Lotta (consigo mesma) é real e a necessidade de pôr terra por meio autêntica. Gostaria de ter lido Lotta aos sete, aos oito, aos nove anos. Gostaria de saber mais pesada a maldição da irmã pequena que a da grande. Gostaria de reconhecer, daquela, a bênção da liberdade para aprender.E que vou querer? Uma pessoínha!