Fora de jogo

Acho que não hã melhor maneira de definir a obra de Uxía Casal como o nome da coleção em que está incluído este romance. Fora de jogo. Razão número um: é literatura juvenil? O mesmo que acontece com Saturno tamén é deus, resulta complicado enquadrar O faro de Arealonga num marco de idade concreto. Pode ser a dificuldade a protagonista. Temos a mania de, para bem e mal, enquadrar como juvenil qualquer narrativa com protagonista adolescente, e não é este o caso. E temos o tom, muito auto-reflexivo. Mistura o desenvolvimento da trama com reflexões que poderíamos considerar demasiado sisudas e filosóficas para uma leitora de quinze anos. A mesma narradora nos dá resposta: fujamos do paternalismo, como foge Uxía Casal na escrita. O faro de Arealonga / Uxía Casal / Xerais / 2001 / 6 euros Razão número dous: Que tipo de romance é O faro? Misterio? Policial? Ficção científica? Espionagem? Narração tradicional? A autora combina elementos de todas estas tipologias para construir a sua escrita, e entrega-nos um texto em que subverte muitas delas, de forma paródica às vezes, acabando por fazer toda uma homenagem, alternativa, aos clássicos. Em tempos da ovelha Dolly, Uxía Casal artelha uma revisão do mito de Frankenstein, sem citar Mary Shelley uma só vez. A universidade de Ingolstadt vira nos laboratórios de Osaka, o refúgio impossível de Genebra muda na vila marinheira de Arealonga, o médico resulta ser físico e o jogo a ser deus tem o mesmo resultado catastrófico. Se no clássico é o doutor quem narra a história, na obra de Casal é uma mulher, Rosalía Pardal, jornalista em aprendizagem, de família numerosa e marinheira e amiga do fareiro de toda a vida. Se o Vítor Frankenstein quer dominar a técnica do transplante para assegurar a vida das pessoas, Néstor Daponte procura oferecer a Rosalía uma solução à sua acondroplasia. Porque nisto se posiciona a autora: ao incorporar às suas obras personagens diferentes, marginais, habitantes das bancadas longe do campo de jogo. Nesta, a chiscadela é colocar como protagonista uma anana, e obrigar-nos a suportar com ela as dificuldades quotidianas que lhe acrescenta a sua condição. E não só: viúvas que não são pranhideiras, fareiros que não são chanquetes, marinheiros que resultam narcos (ups!). O romance foi publicado em 2001. Vinte anos passaram sem que lhe pese o tempo, a pesar de tratar o que daquela era atualidade científica: a modificação genética. Polo mesmo que não lhe pesam ao Frankenstein: a trama repousa em boa literatura. Em reflexões éticas universais.