Felizes e ferozes

Aconteceu na pré-história, antes da Covid (a.c.). Na escola tínhamos montado o Clube de Leitura de Primária. Combinávamos para jantar e, de sobremesa, jogávamos com livros. A rotina era jantarmos no salão de atos as mestras e o alunado enquanto aguardávamos polo grupo de quem tinha direito a comedor para começar a sessão. Ao estarmos no salão de atos, nasceu o jogo: prós, vamos preparar uma obra de teatro e quando venha o resto, representamos. As crianças corriam pra o cenário e fechavam o pano. Desde fora só escuitávamos balbordo. De quando em vez por entre as rugas do pano assomava uma cabecinha: pró, podemos ir ao museu? Faz-nos falta o telefone que há que tem a roda dos números… Pró, deixas-nos o teu gabão? Parece pelúcia e podemos fazer de animais… Pró, precisamos algo encarnado, com carapuça a poder ser… Podemos mirar na caixa de roupas perdidas? As mestras nada fizemos, fora dizer sim ou não (sempre sim). E aparecera uma sombra a correr levando um telefone na mão, e tivemos a visão fugaz de um carapuça a revoar, e vimos entre as cadeiras do salão passear um abrigo peludo… Quando chegara o alunado do comedor incorporou-se ao grupo teatral: sim vinde, fazem falta árvores! O balbordo continuava com as mestras indecisas: que fazemos, deixamos que continuem? apuramos o jogo? Decidimos deixar. O tempo de ensaio segredo, ainda que para mim foi eterno pola barulhada, não deveu exceder dos vinte minutos. Passado o tempo, uma cabecinha assomou entre o pano: senhoras e senhores (éramos só duas mestras) com todas vostedes (as duas mestras) o grande espetáculo de Feliz Feroz. Abriu-se o pano e uma meninha chorava desconsolada ao telefone do museu: ai, meu irmão, que desgraça tão grande! No extremo do cenário, outro meninho com o meu gabão posto ao invés, calmava: Tranquila, irmã, envia-me ao Lobinho este verão, que já lhe aprendo eu a ser Feroz como é devido. Foram passando crianças que, perante duas mestras atónitas, debulhavam em formato teatral, uma por uma, as cenas todas do livro Feliz Feroz, do Hematocrítico. Fieis ao texto. Fieis à história. Sem poder evitar, em determinados momentos, romper com o pacto ficcional e escachar a rir, porque es divertiam os fracassos continuados do Lobo Feroz por fazer de Lobinho um bicho malvado, atroz, horrível. Acabada a representação, o público todo (duas mestras), entusiasta, celebrou em pé e com palmas o milagre literário. Sempre com ledícia.