Cristais que fazem espelho

Reparei em que no fundo da sala tinha quatro meninhas a chorar. Acheguei-me, preocupada por não ter percebido nada de estranho na sessão. A música que está a soar põe-nos triste, pro. Faz-nos lembrar uma pessoa que conhecemos que morreu de suicídio. E sentei com elas e falamos dessa pessoa, da tristeza, dos processos de dó. As meninhas calmaram e foram para o recreio. Porém, eu fiquei com a frase a dançar na cabeça: lembramos uma pessoa que morreu de suicídio. Essa maneira de explicar não era delas. Aprenderam-na no livro que escolhemos para fechar o ano do nosso Clube de Leitura: Un elefante na sala de estar, de Berta Dávila. A anedota dá-me para reflexionar sobre o impacto que sobre nós pode causar uma expressão, um verso, uma obra artística. As minhas alunas nunca teriam chorado juntas a sua pena se não for polas sessões partilhadas a falar do elefante. Un elefante na sala de estar / Berta Dávila / Xerais / 2022 / 140 páxinas / 12,95 euros Un elefante na sala de estar narra o processo vivido polas pessoas que constituem o entorno afetivo de Rosa, uma mulher que morre por suicídio. Misturando as estruturas do diário e o policial, a autora coloca as personagens a contar em primeira pessoa como vivem as suas vidas com essa morte carregada nas costas. Há sentimento de culpa, medo a lastimar se calam, se falam, obsessão por chegar às razões últimas de Rosa, necessidade de explicar e explicar-se. Porém, isso sabemo-lo as leitoras, que temos acesso ao que pensa cada personagem, mas elas ignoram o que anda a passar pola cabeça das outras. Em muitas ocasiões percebemos como poderiam ser de ajuda umas a outras se evitassem o tabu de falar da morte, do suicídio, do que sentem, e lemos como o silêncio incrementa a dor. Como bem indica a capa do romance, este se constrói como um caleidoscópio. A coleção de vozes leva-nos a reflexionar sobre questões tanto individuais como coletivas (os cuidados, a atenção médica à saúde mental) e traz à tona outros temas sobre os que boa falta faz que descorramos o véu de silêncio. Muitas vezes me perguntam se a literatura pode mudar o mundo. Acho que não. Ao tempo, sim acho que uma obra literária pode mudar uma pessoa, porque a faz reflexionar, porque faz que entenda a situação de outras, porque consegue que se reconheça numa posição concreta, porque a faz cair da burra (de algum) dos problemas do mundo. Essa pessoa pode logo tomar decisões, atuar conforme à nova consciência e, sim, contribuir a mudar o mundo. A crebar os espelhos dos tabus e mudá-los em caleidoscópios.