Como [a]mola!

Nove anos são muitos para não procurar nada de proveito na vida. Horas são de escrever um livro. A protagonista explica-nos como vai fazer: contará o que lhe pete, mas sempre verdades, não porque acontecessem na realidade mas porque as viveu, as pensou, lhas contaram ou mesmo as sonhou. Verdades. E não vai contar com início, nó e desenlace, que as cousas da vida nunca foram assim, mas todo seguido e sempre o importante. Cuidado. Não temos que lhe fazer caso. Uma cousa é a meninha de nove anos que fala e outra cousa a autora que constrói por trás. A narradora vai evoluíndo, misturando estórias próprias e estórias dos seus avôs e avós, para pouco e pouco, dar espaço à sua voz, da que adquire consciência no processo de escrita. E acaba por fazer-nos ver, não a importância dos livros ou da literatura, mas do facto de se escrever. A voz da narradora erige-se envolvente e poderosa. Mas é uma voz de nove anos. Combina a seguridade de o saber todo do mundo com a certeza transparente da sua inocência. Começa por admitir que de vez em quando mente (o diálogo com a tia é delicioso) para acabar com trechos enteiros fabulados. Aparecem-se um rural e um bairro que já não são, mas que muitas reconhecemos das nossas infâncias, e nos que podemos rastejar elementos biográficos da autora (a casa rebentada de livros, o pai mestre, as visitas de poetas, a mudança do rural à cidade). Vou contar de mim, afirma a meninha. Mas cuidado, nunca diz: o meu nome é Xela. A voz narradora é a voz de uma nena. Uma nena que vai aos grilos, que tem medo de uma das vacas mas não da cidade, que participa em batalhas com terrões e pandulhos, que quer ser gandeira ou direitora de orquestra. Afiadora não. Xela Arias constrói uma meninha de verdade que rompe com o esterótipo de meninhas dos contos. Uma meninha com carácter que faz por resolver todo quanto enigma se lhe põe por diante. Como mola! São maravilhosas as ilustrações de Luz Beloso, com essa rapariga transunto de Xela Arias a ocupar as lâminas. E é estupenda a diagramação de Hayat Husein, a editar o livro em um formato diferente e atrativo. E dói, por todo isso, o desleixo da revisão linguística, tendo em conta, ademais, que a autora foi editora das exigentes. É aí que a prevenção inicial virou raiva. Como amola!