Aprender a luita

Há expressões que marcam maneiras de atuar na vida, de reagir aos problemas. Duas são as que mais me incomodam: tu não te metas e a ti não te afeta. Dona Lolita insulta a Laura, e a ti? a mim não, que eu faço bem as tarefas, bom, a ti não te afeta, tu não te metas, que se queixe a sua mãe. E assim aprendemos a calar perante as inustiças, a não defendermos as companheiras, a não nos defendermos. Por isso gostei deste O noso recuncho, um álbum ilustrado no que essas expressões e a atitude que representam nunca aparecem, nem como pantasmas. O noso recuncho / Marina Núñez (trad. Iolanda Mato) / Ilustrações: Avi Ofer / Triqueta / 2022 / 48 páxinas / 16,50 euros O nosso recuncho é um solar in-edificado que a meninhada de um bairro utiliza para brincar. Para brincar como já quase não brinca a meninhada destes tempos: livremente e sem direção adulta. Mas chega a nova e o conflito em forma de obras e buldózeres e escavadoras. A primeira reação da meninhada é aproveitar o tempo que resta. Esgotar os dias no campo de jogos antes de ele desaparecer. Inocente evasão. Porém, Berta, a mais cativa do grupo, decide agradecer ao espaço o tempo oferecido. Porque os solares nunca são abandonados. Sempre têm vida neles, sejam silveiras, carriças, ratos ou crianças. Berta põe sementes enquanto as companheiras continuam a brincar. E elas imitam-na. Nos dias seguintes, todo são sementes de futuro. E sonhos. Desejo de que agromem e cresçam e continuem a fazer do solar universo de jogos. Mas a vida não é como as crianças sonham, que sempre andamos as adultas por aí a fazermos adultezas. E chegam os buldózeres e as escavadoras a interromper jogos. E o conto já não é bincadeira. A luita sempre explode quando menos o aguardamos, em uma insignificância que muitas não considerariam. Mamãs e papás chamam polas crianças para apartarem da maquinária urbanística. E as crianças desobedecem. Porque não é justo. E sentam. Porque não é justo e sim lhes afeta e sim se querem meter. As adultas enfadam-se, berram. As máquinas também se enfadam e berram. A meninhada não cede. As máquinas não podem reflexionar, mas as adultas sim. E param, e observam, e reflexionam. O espaço também é delas, também lhes afeta e têm que meter-se. Juntam-se com a meninhada e luitam. Com regadeiras na mão, imitando à Berta, a mais cativa, chovem água nas sementes que já são agromo de futuro. As histórias podem acabar bem ou mal, com final feliz ou triste, de maneira aberta. Desta não dizemos, porque o que se importa, sempre, é o caminho. O de aprender a rebeldia.