A papar moscas

Atende a cada uma das letras que estás a ler. Repara em como diferencias umas formas de outras, e identificas o grafema e o associas a um som, e arrejuntas um som com outro, mas sem o pronunciar, só imaginando-o na tua cabeça, e como acabas por reproduzir no teu cérebro este parágrafo que eu escrevi três semanas antes de tu o poderes ler. Desmontando o corpo. Construíndo a ciencia. / Andrea Barreira Freije (il. Aynara Pereiro) / Baía Edicións / 2021 / 48 páxinas / 15 euros E agora eu conto-che, após este prelúdio em que che pedim que paponeasses um pouco, que antes de nós nascer alguém houve no mundo que se interessou por esse processo de cifrado e decifrado de rascunhos, e de como os neurónios e as áreas de Broca e Wernicke atuam para nos podermos comunicar. A que me atendes doutra maneira? A que che apetece continuar a paponear, reflexionar, aprender? Esta é a estratégia que escolhe Andrea Barreira para dar-nos a conhecer o trabalho das irmãs Elisa e Jimena Fernández de la Vega. Pingas de água, gémeas gemas, cuspidinhas elas. A autora opta pola metáfora do espelho, só que não coloca uma irmã perante a outra. O reflexo delas somos nós. Assim, convida-nos a observar e interrogar-nos sobre o nosso corpo, como ecoadas nas vidas e nos corpos das Fernández de la Vega. Elas nascen, como é que tu naceste. Elas foram colocadas no grupo mulher, onde é que te colocaram a ti. Elas tiveram família que as deixou estudar, que é que lhe aconteceu às mulheres da tua família. Ou bem, observa como é que respiras. Aspira, expira. Inala, exala. Isso fez a Elisa. E pesquisou o funcionamento dos pulmões. Ou bem, inventa um animal, olhos, focinho, gadoupas. E inventa uma animala, olhos, focinhos, gadoupas. Agora pensa como seriam as crias que teriam animal e animala. O verde dele? A caluga alargada dela? Isso fez a Jimena, pesquisar na genética e nas suas leis. Avançando na leitura viajamos das irmãs Fernández de la Vega ao nosso eu. Percebemos de onde lhes nasceu a curiosidade, temos ideia do que é fazer ciência, compreendemos que nós também podemos ser curiosas: mesmo sentimos curiosidade. E também aprendemos que a vida por vezes é dura e que as cousas não acabam como começam e que há obstáculos sociais, doenças, guerras que obrigam a deixar de banda a curiosidade, a ciência, a vida. Desmontando o corpo. Construíndo a ciencia é um convite feliz a ler na vida das demais a nossa própria, a construírmo-nos como pessoas enquanto apampamos com a maravilha que é o corpo humano. A criatividade que nasce de papar nas moscas.