O que arde em Portugal

4 de fevereiro de 2023. Pouco passava das 20.30 quando um incêndio deflagrou num rés-do-chão de um bairro tradicional de Lisboa, a Mouraria, provocando a morte de duas pessoas e o ferimento de outras 14. Este fogo permitiu ao país ver o que qualquer pessoa que caminhe com alguma atenção pelas ruas do centro da capital portuguesa já sabia: os extravagantes preços da habitação atiram trabalhadores migrantes para apartamentos sobrelotados, sem as mínimas condições de habitabilidade. 6 de agosto de 2022. As televisões mostravam o início de um incêndio na Covilhã, que viria a consumir 25% do Parque Natural da Serra da Estrela. Durante vários dias o fogo avançou rapidamente por terrenos abandonados por proprietários que há muito partiram para outras geografias à procura de melhores condições de vida. Este incêndio deflagrou cinco anos após termos ouvido os principais decisores políticos prometerem mudanças estruturais na ocupação de um interior abandonado, em resposta ao abalo que o país sofreu depois de perder 114 pessoas nos fogos de 2017. O que arde em Portugal são as comunidades e os territórios marginalizados. Apostas políticas Poderá haver culpas individuais a apurar em cada incêndio que deflagra, mas não basta. O fogo consome o que o modelo de desenvolvimento económico português deixa na margem, e não é uma inevitabilidade. Ao longo das últimas décadas, o país apostou na concentração de pessoas e de atividades económicas numa pequena parte do território continental. Segundo os dados dos censos de 2021, 20% da população vive em sete concelhos, todos localizados no litoral, ocupando pouco mais de 1% do território. Por outro lado, 20% da população reside em 208 concelhos que abrangem 66% da área do país. Digo "apostou", porque é o resultado das escolhas políticas feitas por sucessivos governos durante as últimas décadas. Usando pretensos princípios da racionalidade económica como justificação, os serviços públicos essenciais foram abandonando partes do território. Segundo um levantamento da Agência Lusa, entre 2000 e 2014 encerraram em Portugal 6.500 serviços e organismos públicos, sobretudo escolas, extensões de saúde e postos de correio, especialmente nos distritos interiores de Viseu, Santarém, Vila Real e Bragança, ainda que também no litoral se cortaram muitas "gorduras do Estado". Também a ferrovia deixou de ser uma opção para as populações do interior. Nas últimas décadas foram desmanteladas as linhas de comboio que chegavam a Viseu, Bragança e Vila Real. Nenhum concelho localizado a mais de 40 km do mar registou um aumento de população É evidente que as dinâmicas de esvaziamento dos territórios afastados dos grandes centros urbanos não é uma caraterística única de Portugal, mas o país carece de cidades intermédias dinâmicas longe do litoral. Os censos de 2021 mostram que em 10 anos a litoralização do país se agravou. Nenhum concelho localizado a mais de 40 quilómetros do mar registou um aumento de população. Os territórios do interior são abandonados pelos seus habitantes porque são esquecidos pelo Estado, que insiste em depositar as esperanças de reverter o despovoamento e envelhecimento de mais de metade do país em iniciativas como a promoção de "turismo interior". O Estado, espectador A inatividade a que estão condenados muitos destes territórios contrasta com a aparente pujança da capital. Lisboa é atualmente o núcleo de uma área metropolitana onde reside mais de um quarto da população. Mas, a sua atratividade vai para além das fronteiras nacionais. Segundo as estatísticas nacionais, em 2021, metade dos estrangeiros a viver em Portugal reside neste território, e 25% das dormidas de turistas estrangeiros são na capital. Pelas ruas de Lisboa abundam estabelecimentos de alojamento local, co-workings, restaurantes e estafetas de entrega, que mostram uma cidade especializada em dar resposta às necessidades de utilizadores temporários. Ao mesmo tempo o mercado de trabalho desregula-se e o imobiliário inflaciona-se. A população está entregue a um tecido económico dominado por atividades com trabalho mal pago e precário, e um mercado da habitação a preços proibitivos. O Estado mantém-se um simples espectador de cidades cada vez mais desadequadas a quem nelas trabalha. Desprovidas dos direitos mais básicos estão as comunidades de migrantes indocumentados, condenadas a um salário que não lhes permite pagar mais do que uma cama numa casa sobrelotada. Ignorar as desigualdades é o combustível de todos os fogos que não param de arder.