A Beira não é Paris

Yasuyoshi Chiba [Getty Images]

Falar, ou escrever, do ciclone Idai, o pior desastre que atingiu o sudeste da África em décadas, segue a causar espanto. Mesmo desde a distância. Segundo o UNICEF pelo menos 1,6 milhões de crianças precisam de assistência urgente -saúde, nutrição, proteção, educação, água e saneamento- um mês depois que o ciclone Idai devastasse partes de Moçambique, Malawi e Zimbábue.

Essa assistência urgente está cifrada em 122 milhões de dólares, mas não chega a seu destino.

Nos dias passados vimos como a catedral de Notre Dame ardia. Embora também causar espanto, não houve pessoas mortas. Não houve pessoas feridas. Não houve, apenas, perda de obras de arte. Nem as abelhas que trabalhavam nos telhados da catedral sofreram danos, tal como nos explica a web de Notre Dame. “Notre Dame de Paris, que alberga esta colmeia, está completamente associada com a preservação da biodiversidade e deseja lembrar a beleza da Criação e a responsabilidade do homem para com ela” As colmeias de Notre Dame foram instaladas pela empresa Beeopic que tem muitas outras nos tectos de Paris.

 

As necessidades de Notre Dame estão amplamente cobertas. 24h após o incêndio, sem vítimas, da Catedral de Notre-Dame as doações para sua reconstrução já ultrapassam a soma de 2,6 bilhões de dólares. Em cinco anos ninguém distinguirá a obra reconstruida da original. Mas as necessidades em Moçambique continuam maciças, com 1 milhão de crianças necessitadas de assistência, seguidas por mais de 443 mil no Malawi e 130 mil no Zimbábue.

 

A segurança alimentar também é uma questão importante porque a tempestade destruiu as plantações semanas antes da colheita

 

Nos três países, as águas da enchente recuaram, e algumas famílias afetadas começaram a voltar para casa. No entanto, milhares permanecem nos campos de evacuação porque suas casas foram danificadas ou destruídas. A segurança alimentar também é uma questão importante porque a tempestade destruiu as plantações semanas antes da colheita.

 

“As crianças que vivem em abrigos lotados ou longe de suas casas correm risco de doenças, exploração e abuso”, disse Henrietta Fore

 

“As crianças que vivem em abrigos lotados ou longe de suas casas correm risco de doenças, exploração e abuso”, disse Henrietta Fore, diretora executiva do UNICEF, que visitou a Beira imediatamente após o ataque do ciclone. “O caminho para a recuperação será longo. É imperativo que os parceiros humanitários estejam presentes em cada etapa do caminho. Precisamos ajudar crianças e famílias para que sobrevivam e, depois, retomem sua vida”.

 

 

Um poema para a Beira

 

Sónia Sultuane, artista plástica e poeta moçambicana, envia-nos um texto “um poema dedicado à Beira por causa do Ciclone, nada mais”. Sob forma de oração recolhe o medo, a necessidade de voltar à vida normal, a necessidade de viver. É a sua forma de chamar a nossa atenção para um problema que, embora não ocupe as primeiras planas dos jornais, segue aí. É também uma forma de nos lembrar que a Beira não é Paris.

 

Dá-nos o silêncio da noite,

não para ouvir a fúria do vento,

não para ouvir mais os gritos de terror,

dá-nos água para regar e semear,

não para afogar a esperança de uma vida inteira,

construída pedra a pedra,

dá-nos a terra seca para enterrar os nossos filhos,

dá-nos o chão para novamente caminharmos livres do medo,

liberta-nos das árvores, para que cresçam frutos e matem a nossa fome,

não nos transformes em pássaros molhados,

pois não saberemos voar, queremos as nossas asas livres, para que possamos voar para bem longe,

deixa-nos viver,

ouve-nos:

suplicamos-te dá-nos o silêncio da noite,

uma noite PAI,

numa casa seca, de barriga cheia,

com a alma sem peso ou medo.

No futuro das próximas gerações,

não queremos a nossa terra famosa pela desgraça que carrega,

queremos a nossa terra famosa pela esperança que depositou na humanidade.

Dá-nos um pouquinho de silêncio,

dá-nos a certeza de um silêncio promissor, para que possamos descansar,

para que possamos sonhar,

com fé de um amanhã melhor!!!”

 

Sónia Sultuane