Pedro Pires: "Será que a democracia liberal é a solução ou será que há uma solução melhor?"

Os processos de independência das colónias portuguesas em África foram longos e em muitos casos só se produziram após milhares de mortes. Cada processo de descolonização foi diferente e teve as suas características proprias, Para conhecermos de primeira mão o caso de Cabo Verde, entrevistamos o seu ex-presidente, Pedro Pires, para que nos relatasse como foram os primeiros anos depois da independência, quais são as súas opiniões acerca de temáticas de atualidade e quais são as suas esperanças para o futuro de Cabo Verde e do mundo. "O que podemos dizer, quer do lado de Portugal, quer do lado de Cabo Verde é que houve uns bons vínculos sem que houvesse uma ruptura" O senhor esteve presente no processo de descolonização de Cabo Verde desde os inícios. Como foram os primeiros anos após a independência a respeito de Portugal? Já lá vão moitos anos e essa reflexão já está mais ou menos feita e até um pouco arquivada. Agora vou tirar do arquivo para lhe contestar a pergunta. A análise que eu posso fazer não é uma análise sobre os factos mas uma análise com 50 anos de antecedência. Creio que foi um processo interessante na medida em que desse processo nasceram novas relações entre Cabo Verde e Portugal. O facto de termos conseguido precisamente manter as relações entre os dois países a um bom nível, diz-nos que fizemos um trabalho válido e interessante, um trabalho que se fez com pragmatismo e com um elevado sentido da realidade, algo que se evidencia porque pudemos manter e até desenvolver novas relações. Nos processos de descolonização, um aspecto importante é a construção de novas relações, acredito que nós tenhamos feito um bom trabalho nesse sentido. As relações são sempre entre duas entidades, não há relação nenhuma de uma entidade consigo propria. Então o que podemos dizer, quer do lado de Portugal, quer do lado de Cabo Verde é que houve uns bons vínculos sem que houvesse uma ruptura. Foi uma mudança em que prevaleceu o sentido do realismo mas tambén a capacidade de manter as condições para que essas relações pudessem florescer. Quais acha o senhor que foram as diferenças entre a descolonização de Cabo Verde a respeito de outras colónias portuguesas em África? Cada caso é diferente na história da humanidade. As situações são diferentes e as maneiras de se relacionar também o são. Portanto, não podemos esperar que todo seja igual, já que o tipo de colonização também era diferente, sobretudo em Angola, onde houve uma colonização de povoamento, quer dizer, transferência de populações inteiras que é algo que pode criar muitos conflitos. Portanto, eu acho que os conflitos é que eram diferentes. Há que procurar analisar e compreender, porque não podemos esperar o mesmo produto de situações diferentes. Os resultados poderão ser semelhantes mas nunca serão iguais e o mesmo acontece com as soluções, poderão ser parecidas mas nunca serão iguais. Há uns anos atrás, o senhor falava em um colóquio sobre as prioridades à hora de governar e como elas mudam com o tempo. Antes, as prioridades eram a descolonização e a independência, mas quais é que são agora? Logo no início da independência, a situação era de uma grande calamidade, não tínhamos nada. Mas agora construímos muita coisa. Na actualidade temos coisas a perder, agora se houver um fracasso, perdemos. A prioridade neste momento, sem identificar nada especificamente, é como consolidar o que já conseguimos e obter melhores resultados, quer dizer, como melhorar aquilo que já temos e conseguimos. Como mobilizar o país para enfrentar com sucesso os próximos desafios, essa é a tarefa de Neves, diferente da de outros presidentes da República que foram eleitos em contextos distintos O atual presidente de Cabo Verde é o senhor José Maria Neves. O que acha do seu mandato até agora? Costuma-se fazer a balança dos 100 dias, com ele agora podemos fazer a balança dos 400 dias. A questão é a seguinte; o novo presidente foi eleito em un contexto completamente diferente. Antes nós tínhamos uma situação de crise em que nos faltavam coisas, mas agora há uma outra situação de crise nacional e internacional provocada principalmente pela pandemia da Covid-19. A pandemia provocou grandes perdas a todas as economias e à economia de Cabo Verde em particular, portanto colocam-se novos desafios. Em situações de calamidade há um elemento que é extremamente importante: a união para conseguir enfrentar e resolver com sucesso os problemas. Neves asume a presidência do país en um contexto completamente diferente dos outros. Ele tem de desempenhar um papel muito importante de unir o país, unir os esforços de Cabo Verde e mobilizar a vontade do país para ultrapassar as dificuldades. Não é por acasso que o lema dele gira à volta da união e da soliedariedade. Nós temos uma palavra em crioulo que é Djunta mon que significa juntar as mãos, esse é o seu lema. Com inteligência mas também com um pouco de amor, o mandato dele exige precisamente isso. Como mobilizar o país para enfrentar com sucesso os próximos desafios, essa é a tarefa dele, diferente da de outros presidentes da República que foram eleitos em contextos distintos. Este é um contexto de crise em que nação deve unir-se para enfrentar as dificuldades. Agora estamos em uma situação de democracia e de competição eleitoral e não é fácil porque precisamos tirar proveito dos erros da governação. Eu acho preciso ultrapassar as diferenças e unir na base de um projeto que nos permita mobilizar as nosas vontades e capacidades mas também aceitar os desafios para construir um futuro de progresso. Ultrapassar a crise exige, por um lado até sacrifício mas exige sobretudo a união. O candidato da esquerda vence nas presidenciais de Cabo Verde O senhor falou no contexto internacional. No mundo ainda há territórios pendentes de descolonização como o Saara Ocidental. O presidente do Governo espanhol asinou há uns tempos un acordo con Marrocos que muitos saaráuis consideraram uma traição. Qual é a sua opinião acerca deste conflito ativo ainda na atualidade? Eu não gostaria de entrar nesse asunto mas eu vejo que é preciso fazer confiança ao Governo espanhol. Pedro Sánchez está em condições de avaliar o que é melhor para os interesses do Estado espanhol. O que é necessário é tentar chegar a uma solução. Eu acho que não podemos excluir essa proposta, vamos ver como se desenvolve. Há colonialismos e colonialismos, e é a partir da análise do que está a acontecer e dos interesses das partes que fazem parte do conflito que se pode encontrar uma solução. A continuar com o contexto internacional, há um conflito bélico muito importante na Ucrânia. Quando é que acha que se pode chegar a um fim da guerra? As guerras sempre tiveram fim. Há guerras de 100 anos, há guerras de 50 anos mas todas tiveram fim, e as guerras terminam sempre nas mesas de negociação. Portanto, o que eu acho é que, de facto há um conflito armado e agora estamos chamados a encontrar uma solução. Como já disse, as guerras sempre tiveram fim, e o fim sempre foi negociado entre as partes que estavam a combater uma com a outra. É crucial que haja de um lado e do outro a vontade de encontrarem a solução. A guerra não é uma coisa boa, todos nós estamos de acordo e uma guerra é algo que não pode durar por toda a vida, é preciso de terminar. Eu espero que tenham a sabedoria necessária para negociar e encontrar uma solução equilibrada e razoável para o conflito. É preciso compreendermos e sabermos o que estes movimentos de extrema-direita pretendem conseguir. No mundo atualmente estamos a viver e a perceber um aumento de apoio à extrema-direita. Há vários presidentes de governos que têm ideologia de extrema-direita. Acha um perigo para a democracia e que vai acontecer com estes movimentos no futuro? É preciso compreendermos e sabermos o que estes movimentos de extrema-direita pretendem conseguir. Por exemplo, Viktor Orbán na Hungria, devemos saber o que ele porpõe como solução aos problemas. Também é preciso fazer uma pergunta: como é que ele consegue nas eleições un resultado acima de 60% dos votos? Temos de procurar saber qual é o motivo desses resultados eleitorais tão bons; será que é pela mensagem que ele levou às suas campanhas eleitorais? Ou o que é que está a perturbar as sociedades para que elas façam certas escolhas? Isso aí é que temos de tentar refletir, o que é que não está bem e o que leva as socieddaes a fazerem tais ou tais escolhas. A sociedade da Hungria podia fazer também uma escolha da extrema-esquerda, mas porquê é que não faz? Então, de novo, o que é preciso é refletir, analisar e procurar quais é que são as razões que perturban as sociedades europeias em que há uma manifestação de apoio às direitas. Não há dúvida que existe uma diferença entre a direita e a extrema-direita e, do meu ponto de vista, a chave da questão está na análise das sociedades e o que as perturba. Também devemos fazer-nos uma outra pergunta: será que a democracia liberal é a melhor solução? Não podemos partir do princípio de asumir que uma ou outra é a melhor solução. O que é que as sociedades nos estão a dizer, de que é que estão à procura? Eu acho que não é razoável pensar que há uma verdade que não pode ser constestada. As sociedades, se calhar, estão também à espera de soluções, e as soluções dependem muito das lideranças políticas e da sensibilidade de cada cultura e cada tradição política. O facto de 20% de um país votar en uma solução de direita ou extrema-direita não significa que seja toda a sociedade a votar nessas soluções. Mas acha um perigo? Se, por exemplo, a extrema-direita de Le Pen ganhar na França, isso será um perigo para a democracia como a conhecemos? Ainda não ganharam. Eu daria essa resposta caso ganharem, mas mesmo nessa situação eu acho que as pessoas vão mudando e, portanto as mensagens também vão ir mudando. Vamos esperar que ganhem para tirarmos concluções. Qual é a percentagem do eleitorado que vota na primeira volta na extrema-direita? Se é 20%, há 80% de pessoas que não se vêem representadas pelas opções de extrema-direita. Ou também, qual é que é o resultado do candidato da France Insoumise? Se ele consegue 20%, há 80% de população na França que não se ve representada por essa opção. A partir dos resultados finais é que nós podemos tirar as verdadeiras concluções. O facto de 20% de um país votar en uma solução de direita ou extrema-direita não significa que seja toda a sociedade a votar nessas soluções. Todos os partidos fazem compromissos em campanha e nos seus programas eleitorais, se ganharem é que podem levar a cabo esses compromissos em base a um projeto e em base ao programa. Mas antes de chegarmos lá, esperemos pelos resultados e façamos o seguinte raciocínio: na primeira volta quem votou na direita e uma vez aí vamos comparar com o que acontece na segunda volta. É a partir daí que podemos fazer os cálculos. Ainda ninguém ganhou e não sabemos quem é que vai ganhar, portanto o que temos de fazer é esperar e analisar a situação. Já para finalizarmos, gostava de lhe perguntar o que é que espera do fututo, quais são as suas esperanças? Não só para Cabo Verde mas também do resto do mundo. O futuro do mundo em geral depende das novas gerações, o que é que as gerações mais novas nos vão oferecer? É a geração da gente de pouca idade que está em causa, não é a minha. Eu já não faço parte de uma geração ativa. A chave, acho eu, está nas gerações da juventude. Tudo reside na atitude, na formação, no comportamento e nas opções de futuro que as novas gerações possam ter. Em Cabo Verde, para que tudo possa correr bem, é preciso ultrapassar a crise. Como é que o país vai conseguir fazer isso? Como é que o país estará daquí a dois anos? Essa é a minha grande preocupação porque a pandemia teve um impacto negativo muito grande e as consequências reais ainda não se conhecen completamente. Também ainda não sabemos qual será o impacto real da guerra na Ucrânia. Pelo de agora sabemos uma das consequências que é um aumento enorme no preço dos combustíveis e a questão é como é que vamos ultrapassar isso. Tudo vai depender se de somos capazes de encontrar uma solução sólida, isso terá um efeito de redução em termos de tensão internacional e também terá um efeito na redução dos preços. O resto todo vai depender, como já disse, das novas gerações. Por exemplo, em Cabo Verde já disse que é preciso ultrapassar as consequências da crise pela pandemia e o impacto da guerra, mas isso não depende só de Cabo Verde. No mundo atual, todos os países são muito interdependentes uns dos outros; isso é algo que as populações devem aceitar como um facto e os governantes também. É um facto innegável que somos completamente interdependentes, por isso é que não podemos pretender que prevaleçam só os nossos interesses porque isso pode afetar outros países e outros Estados. É deste jeito que se deve pensar à hora de tomar decisões por parte dos governantes e líderes de governos. Temos de ter em conta a existência desta dependência e temos de ter em conta os interesses de uns e outros, porque nunca vai haver um único interesse. A respeito de quando eu estive na Presidência de Cabo Verde, agora há uma nova perceção da política e uma nova perceção das relações de força no mundo. Para isso é preciso entendermos a política atual e dialogar mas eu e a minha geração já quase não podemos fazer nada a esse respeito. Como já disse são as gerações de gente mais nova as que podem conseguir que as coisas mudem para melhor. "As mulheres percorreram um longo caminho, semeado de sangue, suor e lágrimas"