Análise

(Des)Ordem social e discursos autoritários

Da mão do direito administrativo vai-se articulando uma malha jurídica que permite "sancionar sem castigar" (Foto: Álex Rozados).
O investigador e advogado Borxa Colemero analiza para 'Nós Diario' os discursos autoritarios.

Os acontecimentos ocorridos na semana passada no Brasil, com o ataque dos bolsonaristas aos mais importantes prédios públicos do país, fijo com que a direita espanhola colocara mais vez no debate a necessidade de um reforçamento da segurança pública, atacando o executivo estatal pola reforma do delito de sedição que deixaria, segundo a sua interpretação, ao estado órfão de ferramentas jurídicas em caso de desordens sociais. As imagens dos distúrbios são usadas, não reivindicar a necessidade de defender a institucionalidade democrática diante dos perigos da ultradireita, mas construir um relato de eventual insegurança face perigos indeterminados.

O espaço público é, então, descrito como lugar de controlo, isto é, como a fronteira interior, tal como sinalávamos num artigo anterior1, que precisa blindar-se. Nesta operação que pretende apartar o debate sobre o perigo do autoritarismo nas democracias contemporâneas, o que procura é focá-lo numa sorte de populismo punitivo em que o perigo está no espaço público e ele é indeterminado.  

 Venda ambulante, mendicidade e protestas sociais são tratados como problemas de convivência

Não tem como objetivo este artigo abordar os fatos ocorridos no Brasil, mas trazer a discussão sobre a necessidade desse reforçamento punitivo do espaço público impulsionado polos discursos da direita e da ultradireita, ou mesmo sobre a necessidade de problematizarmos sobre os "excessos" de controlo que sobre o espaço público se exercem atualmente. Quer dizer, não precisamos acudir a uma situação de distúrbios como a referida para observarmos como já, sob a aparente democratização do controlo social e o princípio de ultima ratio do direito penal moderno, são construídos espaços de criminalização através do que chamamos burorrepressão, de forma muito silenciosa e sem levantar grande debate na opinião pública.

Da mão do direito administrativo vai-se articulando uma malha jurídica que permite "sancionar sem castigar", ou reprimir condutas no espaço público sem chamar a atenção. Por todas, destacamos as ordenanças municipais de todo tipo ou a polémica Lei Mordaça, chamada a regulamentar os espaços de convivência sob a premissa do civismo. Qualquer uso inadequado como a venda ambulante, a mendicidade ou as protestas sociais são tratados como problemas de convivência, ainda quando tais fatos remetem para o exercício de direitos e liberdades fundamentais.

Deste modo, não é preciso pensarmos na excecionalidade soberana e na intervenção policial associada a ela, porque a própria "normalidade" baliza os usos do espaço através de qualquer administração como pode ser um concelho e os seus agentes de autoridade municipal.   

Sem dúvida, assistimos nos últimos anos a um notável incremento da potestade sancionadora municipal, autonómica e estatal, que gere administrativamente, por meio de sanções, questões claramente políticas cujo resultado tem sido a ressignificação do espaço público. Assim, na procura do civismo, o espaço público é um campo de disciplinamento que tanto regula um grande evento desportivo ou musical, como uma manifestação.

De modo que o civismo se converte, antes, num projeto de normalização a penetrar capilarmente na sociedade através de uma disputa, que é ideológica sobre o que entendemos como ordem e desordem. Longe da ideia do espaço público como um lugar de encontro (e desencontro), quer no âmbito cultural, que no âmbito social, bem como nos seus próprios usos que são substancialmente alterados.   

Sendo assim, a nossa análise crítica não se deve dirigir apenas para as grandes reações estatal-soberanas do controlo das eventuais desordens públicas, bem como para as chamadas a medidas autoritárias seguindo as narrativas securitárias do medo.

Veja-se os exemplos no estado espanhol da gestão da migração, sempre atravessada polo discurso da insegurança na rua, ou as expressões populares como as acontecidas na Catalunha, sempre entendidas como desafios ao estado. Se bem é imprescindível termos presente a tentação de feche autoritário do estado, também resulta imprescindível estarmos atentos ao disciplinamento desde abaixo, dirigido, principalmente, para a criminalização da pobreza, dos grupos sociais subalternos e das formas de inserção social e económica fora da lógica de mercado vigente, que são colocadas, e punidas, como um risco existencial abstrato que constitui uma ameaça para o conjunto da população.