Opinión

Um regueifeiro sudanês no World Press Photo

Durante as revoltas de 2019 em Cartum, capital do Sudám, o fotógrafo japonês Yasuyoshi Chiba reparou num grupo de jovens às escuras, a baterem palmas. No meio deles um moço leva a voz principal, recita um poema contra o governo enquanto improvisa parte dos seus versos, com a mao no peito. Entre tanto, enquanto o moço toma ar e pensa o novo verso, o grupo de jovens, na rua, berra em árabe “Thawra! Thawra!” (Revoluçom! Revoluçom!).

"Era bonito o facto das pessoas recitarem poemas como forma de protesto em circunstâncias tam complexas", conta o fotógrafo. O certo é que boa parte das revoltas populares e mudanças sociais com relativa atençom à questom cultural tenhem-se apoiado na poesia oral como ferramenta para essas mudanças. A palavra rimada, e em muitos casos improvisada, assim como o próprio contexto coletivo de criaçom da mesma, a modo de performance poético-política entre quem improvisa e o público participante, serviu e serve como dispositivo para a açom de diversos coletivos.

straight voice

Sabem-no bem em Euskal Herria, onde a poesia improvisada, longe de pertencer a uns poucos privilegiados, coletiviza-se na base social, de velhos a novos, de nais a crianças. Esta poética, que envolve um amplo espetro social baixo a prática do bertsolarismo, tem nom apenas o mérito de conservar umha tradiçom oral que é central na sua história e na sua conformaçom identitária, como também ter modernizado a prática e, como apontava antes, democratizá-la até o ponto de fazê-la cadeia de transmissom das diferentes reivindicaçons populares bascas. Possivelmente, e como tem apontado já o investigador John Foley, o movimento gerado arredor da prática do bertsolarismo, que é diverso, é quem mais recordes bateu na socializaçom da improvisaçom oral a favor dum movimento popular que reivindica, reafirma, o seu espaço no mundo.

No Curdistám, a tradiçom oral tem umha presença relativamente importante na construçom cultural da comunidade curda. Como a língua, a tradiçom oral improvisada, que recebe o nome de dengbêj, foi duramente reprimida polos diferentes governos de ocupaçom do território curdo, mas conservada graças a um forte assentamento da tradiçom popular e umha incansável dignidade anti-estatal. Nas cidades e bairros do Curdistám, cada vez mais adaptadas à lógica da autonomia do Confederalismo Democrático, o papel da juventude organizada no ativismo de libertaçom nacional curda rebelou-se central (junto com o indubitável papel protagonista das mulheres das milícias curdas). Numha entrevista realizada à organizaçom juvenil curda Tatort em se lhes perguntava polo seu papel na organizaçom das comunidades, apontavam para três âmbitos de trabalho: o cultural, o social, e a resistência. Umha das vias utilizadas na reivindicaçom e fortalecimento da consciência de povo é a prática do dengbêj. A pesar dos escassos arquivos de tradiçom oral conservados em língua curda, a memória da oralidade está viva e funciona ainda como central dentro do leque de práticas da tradiçom cutural. O grupo de jovens entrevistado explica que graças à construçom de 'centros culturais' estabelecidos em território ocupado polo Estado turco, a demanda e prática do dengbêj incrementou-se exponencialmente, sendo umha das aulas mais demandadas, por exemplo, no centro de Colemêrg, junto com o baile tradicional.

A tradiçom oral na Galiza, e nomeadamente a improvisaçom oral em verso, conta com umha ampla disponibilidade para a implementar nas nossas práticas culturais e políticas mais atuais, diversas em repertórios e em espaços de açom, mas que podem confluir na construçom dumha hegemonia cultural galega autónoma. Nom esqueçamos que, em certa medida, a memória e a experiência da tradiçom facilitam umha série de formas de fazer coletivas com possibilidade de serem reformuladas para as necessidades presentes. Em 2015, a final do mundial de slam poetry celebrado no Washington D.C., recolheu a máxima participaçom na sua história. A ganhadora, depois de bater-se com mais de um cento de participantes nos encontros poéticos, foi Emi Mahmoud, mulher e sudanesa.

A novíssima fornada de regueifeiras que vem transformando o panorama, organizada hoje graças à anterior conservaçom e difusom que durante décadas tem levado a cabo a associaçom ORAL, e às pessoas participantes da regueifa em festas e seraos, nom se pode entender tampouco sem a força criativa dos movimentos sociais. A incorporaçom de novos repertórios, vinculados a modelos de açom social rupturistas como o feminismo, o ecologismo ou a diversidade sexual, junto com a conservaçom e modernizaçom das tradiçons culturais populares e da reivindicaçom linguística, podemos ver que na Galiza, como no Sudám, podem ser ferramentas para a transformaçom, o retrato dum regueifeiro sudanês tem um aquele com umha rapeira galega. A revoluçom vai ser regueifada.

Imaxe: Straight Voice", de Yasuyoshi Chiba, imaxe gañadora do World Press Photo 2020

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