Opinión

Do Cel-lo indigente ao multilinguismo universalista

O 9—N deixa para a história, polo menos, dous conjuntos de imagens: umas surpreendentes, outras patéticas, outras simplesmente situadas num território onírico de pesadelo.

O 9—N deixa para a história, polo menos, dous conjuntos de imagens: umas surpreendentes, outras patéticas, outras simplesmente situadas num território onírico de pesadelo. Esses dous conjuntos aos que venho de me referir podem apresentar-se como emblemas respectivos de duas formas de ver e estar no mundo: por uma parte, a foto dum ministro espanhol dando explicações sobre o processo catalão com um microfone que não é quem de se manter em pé —interessante símbolo sintomático— e que um técnico tenta manter embrulhando-o com Cel-lo, aquele mágico produto das nossas infâncias; por outra, a do presidente da Generalitat, Artur Mas, numa conferência de imprensa em catalão, espanhol, francês e inglês ou Oriol Junqueras exprimindo os seus pontos de vista em catalão, espanhol e italiano.

"Perante o multilinguismo de Mas, apresenta-se a incapacidade idiomática, quase genética, de Rajoy, continuadora de toda uma linha de presidentes espanhóis estritamente monolíngues que afirmam, com afoiteza ilimitada, que o “nacionalismo se cura viajando”.

Em grande medida, o que também fica para a História é o que subjaz debaixo de ambos dous grupos de imagens. Não sei se é dramática ou enternecedora a imagem de Francisco Vázquez, na Praça de Maria Pita, microfone em mão —há que ser otimista para usar megafonia com auditório de 36 pessoas!— como se se tratar dum líder sindical,  falando a muita menos gente que a que há num dia assoalhado num café crunhês, acusando a PP e PSOE de cumplicidade. Ignoro como qualificar a de Blanco Valdês no Obradoiro perante um grupo, no que sobrancea a terceira idade, menos numeroso que nalgumas das suas aulas e desconheço como definir Gloria Lago em Vigo dirigindo-se a uma confraria ainda mais limitada. Paga a pena analisar a linguagem fossilizada, que ecoa desde outro tempo, que arvoraram estas pessoas: “regiones españolas”, “mutilación”, “sediciosos”, termos todos eles que os que vivemos e sofremos a ditadura franquista não esqueceremos jamais. Não é estranho que entre os assinantes do manifesto Libres e iguales, figure Saenz de Ynestrilas, que entende essa linguagem e é solidário da mesma. 

Porque a imagem que os representantes do Estado Espanhol e satélites  oferecem é lamentável: perante o multilinguismo de Mas, apresenta-se a incapacidade idiomática, quase genética, de Rajoy, continuadora de toda uma linha de presidentes espanhóis estritamente monolíngues que afirmam, com afoiteza ilimitada, que o “nacionalismo se cura viajando”. Um presidente que afirma que não lê e que a sua imprensa de referência é o “Marca” merece ser representado como há poucos dias aparecia nuns quadrinhos: fumando um charuto e lendo uma revista intitulada “El Golazo”. Perante o perfil profissional de historiador, autor de numerosos textos, de Oriol Junqueras ficam certas fotografias de Francisco Vázquez, outro modelo de uso da brilhantina, que nos lembram o vocalista da banda musical mexicana El Recodo e que nos situam num tempo, por sorte, já ultrapassado. Esse é o espírito da Espanha secularmente lamentável que mostra o Partido Popular, em grande medida o Partido Socialista e de maneira quase absoluta as pessoas promotoras do manifesto Libres e Iguales. Manifesto que, de maneira muito significativa, depois de mais de 4 meses de circulação e publicidade gratuita, apoio de prêmio Nobel incluído, apenas conseguiu apanhar, em todo o Estado, 16.000 assinaturas. Compare-se esse dado com 2 milhões trezentas  mil pessoas que se mobilizaram em Catalunya o dia 9 e reflita-se.

"A Espanha que conseguiu que quem simplesmente gostávamos do nosso país —Galiza— quando éramos adolescentes, nos convertêssemos, dez, doze, quinze anos mais tarde, em independentistas, porque Espanha é um projeto secularmente insuportável". 

Detrás dessa atitude de defensa da lei (dizia há poucos dias Jorge Verstrynge que a direita dura é a que mais emprega a expressão Estado de Direito) existe essa Espanha nojenta de charanga pandereiteira que lembrava o poeta, a Espanha da perseguição, a Espanha “canhí” e hortera que não teve Revolução Industrial, nem Revolução burguesa (com as possíveis exceções de Catalunya e Euskal Herria, surpreendente, não é?), na que, quase meio século depois da queda da Bastilha a Santa Inquisição, quando já entrara o século XIX, seguia a executar pessoas, a Espanha da expulsão dos mouriscos, dos judeus e os Jesuítas, a Espanha de Torquemada e Santiago Matamoros, a da “cruzada”, a das foxas comuns, a que nunca negociou e cujos territórios sempre houve de ceder, a Espanha que acabou com duas experiências democráticas republicanas através de golpes de estado e cujo exército não ganhou uma guerra nos últimos dous séculos e que só se utilizou para e repressão dos povos basco, catalão, espanhol e galego aos que diz defender; a Espanha obtusa, inculta e incapaz de aprender, que repite hoje as mesmas palavras com as que, há 120 anos, agasalhava a Cuba, país que terminou por atingir a independência; a  Espanha incapaz de oferecer um projeto de modernidade, a das touradas e o maltrato animal, das cabras que se guindam desde torres sineiras, a que enterra em cal vivo os detidos, a Espanha que, do despojo americano, só conseguiu formar uma classe ociosa que entrou no século XX inspecionando as suas terras a cabalo e enfeitada com chapéu cordobés; a Espanha, que, como nos versos de Cavafis, “não acredita no futuro, não desfruta o saber, não a enfeitiça o progresso”, que “desprecia cuanto ignora”, dito, justamente, por um poeta espanhol; a España do “viva la muerte”, “vivan las cadenas”, “Santiago y cierra España” ou “que inventem ellos”; a Espanha que, em 2013, proíbe batizar uma criança com o nome de Lenin e obriga a estrangeiros (notadamente americanos do Sul) que tivessem tal apelativo a muda-lo; a Espanha do fuzilamento de Companys, de Bóveda, de frades bascos no ano 39, porque Espanha “antes roja que rota”; a Espanha de Gernika, de Gasteiz, de Ferrol, de Montejurra, do golpe de Estado do ano 1981, na que —nos começos dessa mesma década— os jornais afirmavam que se vivia “o período democrático mais longo que desfrutou Espanha”, a que ainda mantém ruas, praças, estatuas com nomes dedicadas a ditadores, golpistas e assassinos, como se em Alemanha pudesse haver uma Gobbelsstrasse ou em Itália a Via Mussolini, a Espanha testicular da “fúria espanhola”, hoje “la roja”, intolerante, que odeia a diferença, porque a teme, e que se constituiu, ao longo da História como um permanente projeto bélico; a Espanha que o informe PISA situa na retaguarda europeia, enquanto o seu ex-monarca mata paquidermos e visita leitos com dinheiro comum; a Espanha dum presidente que prefere um partido de futebol que a atenção a problemas graves do país que, segundo ele, o preocupa, a Espanha do roubo e o espólio sistemático, sem futuro, de costas permanente virada às correntes de avanço que chegavam de Europa, a Espanha de desvergonha que hoje mesmo, a finais de 2014, inaugura uma placa em honra de Carrero Blanco, como se Argentina dedicara uma praça a Jorge Rafael Videla ou Chile uma rua a Augusto Pinochet, a Espanha que, como o mal alunado, é muito boa em religião e esporte, mas inútil no que atinge à pesquisa e a ciência, como o mostra a emigração esmagadora do mais talentoso da sua mocidade e, contudo, mantém no desemprego mais da metade da que quer ficar; a que, a começos do século XXI, proíbe, porque assim o desejava a sociedade medieval presidida por Rouco Varela, a pesquisa com células estaminais, cousas que não devem preocupar, provavelmente, a quem se proclamam como livres e iguais. A Espanha que conseguiu que quem simplesmente gostávamos do nosso país —Galiza— quando éramos adolescentes, nos convertêssemos, dez, doze, quinze anos mais tarde, em independentistas, porque Espanha é um projeto secularmente insuportável. 

Quereria finalizar com um breve apontamento numérico sobre o método com que o Estado e os mídia afins tentam sabotar a consulta catalã. Depois de negar que dita consulta tenha validez, repite, sem cessar, que só um terço da população catalã —1,85 milhões de pessoas sobre um recenseamento total de 5,4— deram um si à independência. A pergunta que ocorre é inevitavelmente que, se a consulta é um simulacro, por que tentar minimiza-la quantitativamente e dizer que de cada três pessoas catalãs só uma quere a independência?. Vexamos: 

"Deixo um problema proposto à leitora: que percentagem de população deveria votar para os NÃO superarem os SIM?. Dado: a participação no referendo escocês foi do 84,5%. Boa sorte". 

Se observarmos os resultados das eleições catalãs nos 34 anos de celebração das mesmas observara-se que o maior número de votos ocorreu no ano 2012, com um total de 3.635.000 votantes e um 68% de participação. Na consulta do 9—N concorreram 2.305.000 pessoas. Dessa quantidade, como disse, 1.850.000 votaram em prol da independência,  enquanto 105.000 votaram claramente polo NÃO e 23.000 polo SIM—NÃO. Há também SIM-BRANCO (22.000) e NULOS. Para os nossos efeitos consideraremos não independentistas os votos NÃO—NÃO, SIM—NÃO e mesmo SIM—BRANCO. Quer dizer 150.000 votos. 

Ponhamo-nos no casso mais desfavorável para as teses soberanistas num possível referendo. Colhamos esse valor máximo dos 3.635.000 votantes. Com respeito dos 2.305.000 votantes do 9—N existe um excesso de 1.330.000 pessoas. Suponhamos que, numa hipotética consulta pola independência, o 100% desse 1.330.000 pessoas votaram NÃO, o qual é literalmente impossível. Porém aceitemo-lo. Se a elas somarmos os 150.000 votos já conhecidos, teríamos um total de 1.480.000 votos NÃO, e 1.850.000 votos SIM. Em resumo: SIM: 55,6%; NÃO: 44,4%. 

Bem sei que a participação num suposto referendo de independência seria mais elevada. Sabemos com certeza que todos os votos seriam NÃO?. Deixo um problema proposto à leitora: que percentagem de população deveria votar para os NÃO superarem os SIM, suposto que o 100% de novas e novos e votantes votarem todos NÃO? Dado: a participação no referendo escocês foi do 84,5%. Boa sorte. 

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