Opinión

Comunismo, terrorismo, coronavirismo

Diferentes autores têm apontado a capacidade caloteira do capitalismo à hora de desenvolver o engano e o mascaramento dos seus verdadeiros fins, acautelando-nos sobre a capacidade da sua engrenagem para arranjar e mudar significados. Há décadas que estamos a presenciar a recriação de termos como liberdade, democracia, radical ou socialismo por parte da ideologia sistêmica, herdeira daquela que, baixo a chefia do presidente Wilson, há um século agora, falavam do medo vermelho. Neste sentido, a mini-série de televisão A voz mais alta, composta sobre a vida do racista, acossador sexual e presidente de Fox News Roger Ailes, resulta uma colossal lição, basilar para qualquer pessoa preocupada pola questão social, no que respeita às armadilhas do poder. Esta redefinição de termos, além da mudança de significados, procura a criação de campos imaginários e simbólicos e a manufatura de alguém a quem combater, quer dizer, a feitura dum Inimigo, exista este ou não. Será justamente a existência desse inimigo quem gere a necessidade de construir elementos de defensa e, complementarmente, de repressão e falsificação. O próprio Roger Ailes, durante a presidência de Obama, era esmagador nas ordens à sua equipa da Fox: “se dizerem progressista nós diremos socialista, se dizerem sanidade, diremos comités de morte. Martelai na mensagem: socialista, muçulmano, antiamericano”. Na esteira deste pensamento, o comunismo resultou ser, durante sete décadas, um inimigo proveitoso.

Com a desaparição do muro de Berlim os passos a seguir por esta estratégia são bem conhecidos: cumpria redefinir o perfil do Adversário —no sentido bíblico, o Mal do que falava Bush— e, num mundo mudável e assinalado pola relatividade, a incerteza e a restrição que derivavam das descobertas de Einstein, Heisenberg ou Gödel, o russo já não era o que fora. Precisava-se então um perfil mais bicudo e o termo terrorista, com o seu volume semântico de opacidade, extremismo e intolerância, constituiu a desculpa perfeita. Nos finais do século XX um informe da CIA advertia serem os maiores problemas do século XXI não a fome, nem a degradação do ambiente, nem a injustiça, mas o terrorismo e os nacionalismos, aspecto que G. W. Bush se encarregava de sublinhar, advertindo, quando ainda era governador de Texas, que “no próximo século as nossas forças devem ser ágeis, letais, de rápido envio, e exigir o mínimo de apoio logístico”. Naturalmente, o vocábulo terrorismo precisaria, por vezes, apelidos que simultaneamente explicitavam, incluíam e excluíam: o termo “terrorismo islâmico” pressupunha a inexistência de “terrorismo sionista”, da mesma maneira que “terrorismo internacional” situaria esta ação na indefinição dum ponto concreto que eram todos os pontos o qual exigiria uma estratégia defensiva total, duradoura no tempo e abrangente no espaço.

Com estes alicerces não é de estranhar que se defrontasse a pandemia da Covid-19 dum ponto de vista agressivo e uma terminologia bélica. A presença de militares anódinos de escassa substância intelectual em conferências de imprensa, os louvores à UME que —como nos lembra um vídeo feito viral— por cada intervenção sua só os bombeiros de Barcelona levam a cabo 2.000, a teimuda alusão à unidade territorial, termo neste contexto nada inocente, e social, porque este vírus “não entende de classes sociais”, mostram que qualquer problema pode ser empregue em interesse do Estado. E, pairando sobre este panorama, os dados crus: o gasto militar no Reino de Espanha, em 2019, ascendeu a 31.830,82 milhões de euros, dos que 8.340,57 milhões correspondem ao Ministério do Interior e refletem as “prioridades en materia de seguridad ciudadana y mantenimiento de la calidad democrática” segundo a página oficial da Guardia Civil, enquanto em sanidade esse mesmo ano foi de 4.251 milhões. Os mortos por coronavirus, no momento que escrevo estas linhas são 26.299, num período de 85 dias, e o número de pessoas falecidas pola ação terrorista 268 num entremeio de 18 anos, 2000-2018. A quantificação do dado é sintomática: investimento de 8.340,57 milhões para combater um fenómeno que deitou 268 mortes e de 4.251 para um que deitou 26.299. A fereza destes dados deita onde se encontram as prioridades do Estado e o imenso negócio que acolhe o mercado de armas que, em 2018, moveu 1.822.000.000.000 euros, 240 euros por cada pessoa que mora neste planeta comesto pola Praga do capitalismo.

Comentarios