Opinión

Lidando no binormativismo

Sigo com atenção a polêmica que nos meios de comunicação se está a desenvolver sobre a questão do binormativismo. Ao não ser um especialista em assuntos de língua, proponho-me tocar só um aspecto que tem a ver, essencialmente, com questões de natureza política como são a Liberdade, a Igualdade, a Justiça ou a Democracia. Também uma reflexão sobre a lei.

Começarei por esta última. Não sou, devo dizê-lo, um afervorado defensor, em abstrato, da lei, porque cheguei a perceber que quem exige o cumprimento da Lei acostuma não reclamar com a mesma intensidade o desempenho da Justiça. Além disso, se voltarmos a olhada para atrás, compreenderemos que o evoluir do processo histórico é o resultante do combate contra a lei até conseguir o seu derrubamento e substituição por uma nova que, com o tempo, mudará velha, coalhará na injustiça e exigirá uma luta renovada contra ela e assim por diante. Foi a não aceitação da lei e a batalha incessante contra ela o que produziu a abolição da escravaria, a obtenção de voto feminino o direito de greve e outros muitos que atingem à classe, ao gênero ou à “raça”. Quem defende a lei, e só a lei, é, por regra, quem arvora posições reacionárias, como demonstra a situação presente a respeito de Catalunha, com Casado, Rivera e Abascal no papel de egrégios defensores da lei (!). O discurso de Jordi Cuixart é o da Justiça; o do juiz Marchena o da Lei. Por isso resulta muito conveniente não confundir a lei que, em geral, é injusta, com a Justiça ou a Liberdade. Assim o entende a criança punida imerecidamente, quando critica os seus progenitores com a expressão “isto não é justo”, não empregando jamais a declaração “isto não é legal”. As crianças adivinham, dizia Paul de Kock.

No caso da normativa atual do galego, as origens situam-se no ano 1971, criação do Instituto da Língua Galega, e na escolha dedocrática, tão cara ao franquismo, de Constantino Garcia como o seu diretor

Para entender uma situação, seja esta a que for, resulta em geral de utilidade recuarmos até as origens políticas geradoras dessa situação. No caso da normativa atual do galego, essas origens situam-se no ano 1971, criação do Instituto da Língua Galega, e na escolha dedocrática, tão cara ao franquismo, de Constantino Garcia como o seu diretor. É preciso sublinhar com toda a crueza que o caso exige que:

a) Garcia, asturiano, levava apenas um lustro residindo na Galiza;

b) não contava, dado inacreditável, no instante do seu acesso ao controlo da padronização do galego, com nenhuma publicação na nossa língua;

c) desde o primeiro instante mostrou uma notável malquerença contra qualquer sinal de achegamento ao tronco galego-português, como exprime o seu testemunho de separatista (sic) lingüístico;

d) Garcia —cujo alunado daqueles anos confirma unanimemente a sua exclusiva docência em espanhol, perante a galega de Carvalho Calero— arvorou uma soberba inversamente proporcional à sua competência lingüística galega, concretizada —em referência a um democrata e minudencioso conhecedor do nosso idioma como Carvalho— na frase: Eu teño o poder agora e solo (sic) teño que poñer a miña xente nos postos claves e de poder ... el [Carvalho] non ten o poder. Estas palavras, que estabelecem um comportamento ético e político que alicerça nos esteios do caciquismo, o favoritismo e o abuso de poder, enquadra-se perfeitamente nos eixos políticos nos que se pronuncia: ministro Villar Palasi, reitor Garcia Garrido, ditadura;

Os 150 livros escassos traduzidos ao galego o ano 2017 que supõem perante os 2.802 traduzidos o mesmo ano só em Portugal?

e) durante anos —de maneira injusta, atendendo os seus méritos acadêmicos— a instituição que fundara achega —grafia, acentuação, léxico— a nossa língua ao espanhol, rompendo um consenso sobre a unidade galego-portuguesa que começara 250 anos atrás o padre Feijó. Um dado: a dia de hoje, a página oficial da Real Academia Galega concede exatamente 3.520 caracteres à biografia de D. Ricardo Carvalho e 11.299 à de Garcia. Umas perguntas: no recuo do galego, a norma não tem responsabilidade nenhuma? Não exerce uma função simbólica de identificação com o espanhol e, logo, de inutilidade fática do nosso idioma? Avigora ou enfeblece a nossa identidade diferenciada como povo? Num mundo regido pola questão económica e numérica é o mesmo apresentar uma proposta que se projeta sobre três milhões de pessoas que sobre 270 milhões e converte o galego na sexta língua do mundo? É o mesmo não contarmos praticamente com nada traduzido que termos ao nosso dispor toda a cultura universal, de Einstein a Shakespeare, de Safo a Darwin, de Marie Curie a Hannah Arendt? Os 150 livros escassos traduzidos ao galego o ano 2017 que supõem perante os 2.802 traduzidos o mesmo ano só em Portugal? E que supõem —dado arrepiante— defrontados ás 555 traduções no Brasil só de Agatha Christie, Italo Calvino e Garcia Márquez?

Voltemos agora à lei e a quem proclama sem interrupção, que a norma é “aquela da que nos dotamos” e que a lei há que cumpri-la. O 4 de maio de 1993, referindo-se a trabalhos que empregam outras regras ortográficas do idioma galego, o Tribunal Superior de Justiça da Galiza, emitia uma sentença cuja literalidade —respeitei a norma gráfica— afirmava:

constituiría un atentado ó dereito á liberdade ideolóxica, científica, de expresión e de libre circulación das ideas, todo intento por parte de poderes públicos de seiturar, co gallo da defensa a ultranza dunha normativización oficial, posturas lingüísticas que, non apartándose do seo común de orixe e convivencia idiomáticas, se amosen como discrepantes e ata críticas coa normativa oficial. Así o entendeu o propio Goberno Galego no aludido Decreto Normativizador, establecendo no art. 7 que a Xunta de Galicia poderá autorizar aquelas publícacións que total ou parcialmente se aparten da normativa aprobada (o salientado é meu).

A contida no parágrafo anterior é a situação legal, contra a qual se segue a atentar com a coarctada da confusão que causaria no ensino, com o qual, de feito, se enuncia a impossibilidade de introdução do português como matéria de estudo qualquer dia, já que, seguindo o razoamento, a confusão que sofreria o alunado faria inviável o estudo desta língua. E, enquanto isto passa, a degradação do nosso idioma, endereçado dia a dia à conversão dum dialeto do espanhol, é constante e incansável. No que atinge o ensino, só um debate aberto poderá resolver a situação actual, sem dúvida complexa, mas cujos principais responsáveis são a ditadura, que fraturou o sistema galego-português —como o catalão-valenciã— e a sua mão executora, Garcia.

Do meu ponto de vista, todo o anterior apresenta notória gravidade, não só no afastamento do galego do seu tronco e do achegamento ao espanhol, mas no que se refere a um atentado à democracia, ao fator de censura que se segue, ao comportamento próprio duma sociedade que emprega uma atitude chamemos-lhe eclesiástica, que aplica critérios semelhantes aos de “como eu não me divorcio, nem aborto, nem sou gay, ninguém se pode divorciar, nem abortar, nem optar por uma determinada sexualidade”.

Quem defendemos a opção binormativista desejamos possuir os mesmos direitos que quem escolhe a norma da RAG e que, por um elementar sentido democrático, cesse este atentado ó dereito á liberdade ideolóxica, científica, de expresión e de libre circulación das ideas, do que falou um dia o TSJG, entre cujas sentenças podemos, por certo, achar algumas redigidas em normas pertencentes à órbita do galego-português, Tribunal a quem ninguém imputou sementar confusão.

Há pouco mais de três anos um membro importantíssimo da Academia Galega confessava-me, numa conversa particular, que —cito literalmente— “o reintegracionismo tem razão”

Termino. Falava de gravidade no parágrafo anterior. Existe, entre nós, porém, um fator de maior desacougo que lembra o antigo conto de H. C. Andersen O traje novo do imperador. Há pouco mais de três anos um membro importantíssimo —sublinho: importantíssimo— da Academia Galega confessava-me, numa conversa particular, que —cito literalmente— “o reintegracionismo tem razão”.

Poucos meses depois, outra pessoa, esta vez responsável duma importantíssima —sublinho: importantíssima— editorial galega afirmava, também numa conversa particular, que “metemo-nos nesta via normativa e agora imos ver como fazemos para sair”. Quer dizer, nem as pessoas mais, aparentemente, defensoras da norma ILG-RAG acreditam nela e, enquanto isto ocorre, como dizia o cantor de Aveiro, “o país vai de carrinho”. Tanto tem porque, ao cabo e ao resto, contam-se por milhões as pessoas a lutarem a diário polo idioma e uns poucos centos de discrepantes somos prescindíveis. Sic transit gloria mundi.

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