Opinión

Alan Lomax e nós

A começos dos anos 50 do século XX, o musicólogo norte-americano Alan Lomax percorreu o nosso país. Nas terras centrais da Galiza, na freguesia de Faramontaos, onde medram as vinhas da Ribeira Sacra e progride o românico de Ribas de Sil, escoitou um capador de porcos —chamado José Maria Rodríguez— executar com o seu chifre o som característico que anuncia a presença dos profissionais à cuja classe José pertencia.

A começos dos anos 50 do século XX, o musicólogo norte-americano Alan Lomax percorreu o nosso país. Nas terras centrais da Galiza, na freguesia de Faramontaos, onde medram as vinhas da Ribeira Sacra e progride o românico de Ribas de Sil, escoitou um capador de porcos —chamado José Maria Rodríguez— executar com o seu chifre o som característico que anuncia a presença dos profissionais à cuja classe José pertencia. De volta aos Estados Unidos, Miles Davis ouviu aquela melodia, ficando abalado até o ponto de compor um tema de título "A frauta de Pan", que hoje figura na discografia de Davis, um dos gigantes do jazz contemporâneo. Assim foi como a humilde peça dum camponês galego transcendeu as fronteiras e mudou, da mão de Davis, numa obra universal.

"A humilde peça dum camponês galego transcendeu as fronteiras e mudou, da mão de Davis, numa obra universal".

No relato precedente acobilha a própria essência do nacionalismo, entendido, por uma parte, como o elemento que avigora a identidade própria, que nos liga a um tempo e a um espaço concretos, que nos outorga o direito à diferença num mundo igualitário, que nos permite permanecer e nos reconhecer como que somos, não como o que outros desejam que sejamos; e, por outra, como o dispositivo que estabelece a ligação que une o Particular e o Universal ou, dito doutra maneira, como a possibilidade de projetar uma língua, uma cultura, uns modos de viver, em resumo, uma identidade, na totalidade de mulheres e homes do planeta. Que o chifre de Faramontaos espalhe a sua harmonia em Atenas ou no Rio da Prata, em Bombaim ou Pretória constitui a prova de que a nação —em contra do que afirma a propaganda hostil— não conhece fronteiras.

"A soberania resulta imprescindível para pensarmos-nos, sermos e decidirmos como pessoas pertencentes a um país de maneira efetiva, não só de jeito nominal"

Tudo o até aqui narrado resulta mui formoso, e convém sublinharmos que Miles Davis converteu os poucos segundos que durava o som do chifre de Faramontaos numa notável peça de quase catro minutos de duração. Mas o disco, publicado em 1960, leva por título "Sketches of Spain" —"Bosquejos de Espanha"— e na sua capa figuram duas bandas, vermelha e amarela, pegadas inequívocas da bandeira espanhola. Também em música, como em qualquer manifestação do nosso ser, a soberania resulta imprescindível para pensarmos-nos, sermos e decidirmos como pessoas pertencentes a um país de maneira efetiva, não só de jeito nominal.

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