Opinión

E Chávez multiplicou-se!

Na semana passada celebrou-se em Caracas o II Encontro de Intelectuais, artistas e movimentos sociais em defesa da humanidade. Foi para mim uma honra e um prazer participar nesse encontro em nome da Galiza com o caro amigo Gustavo Luca de Tena.


Para Vanesa e Andi, da tribo dos bons e generosos

Na semana passada celebrou-se em Caracas o II Encontro de Intelectuais, artistas e movimentos sociais em defesa da humanidade. Foi para mim uma honra e um prazer participar nesse encontro em nome da Galiza com o caro amigo Gustavo Luca de Tena. Dez anos atrás, o falecido presidente Hugo Chávez impulsara este projeto, destinado a debater e difundir as achegas transformadoras das sociedades onde se iniciassem processos revolucionários e a fazer eco a tantas injustiças que se cometem no planeta. Hoje, com o avance neoliberal em plena força, pretende-se reativá-la e criar redes de expansão. Se alguém pensar numa elite de governantes ou de políticos em exercício, erra: no encontro -e sem ânimo de desmerecer as pessoas tão dinâmicas e ativas que tivemos de companheiras- não estávamos as primeiras espadas das organizações; apenas um conjunto de pessoas que dávamos voz, no meu caso de maneira imerecida, a formas dissidentes de pensamento e de ativismo: feminismo, ecologia, decrescimento, auto-gestão, organismos anti-repressores, processos de independência nacional convocavam-se em nós e connosco, junto a toda a gama dos vermelhos. 

"Era este um encontro auspiciado pelo governo bolivariano da Venezuela mas em absoluto institucional no sentido de fossilizado, de limitado nos temas, de censurado, de controlado".

Pessoalmente, tive oportunidade de falar de feminismo e poder popular num grande teatro onde o público se entregou ao debate. Declarar num país do Caribe, onde o machismo adota ainda múltiplas formas, que o feminismo não se limita a partilhar a torta do poder também com as mulheres, mas que exige incorporar valores alternativos à competitividade, ou que devemos domar os liderados individuais na terra que adora Chávez é o mais próximo ao debate de ideias frutífero e provocador que posso imaginar. Entre muitas outras palestras, assisto a uma particularmente lúcida do Iñaki Gil de San Vicente sobre a repressão em Euskadi, onde foi possível darmos a conhecer a realidade nacional galega, mesmo nas suas expressões tabu: a chamada Resistencia galega e as sentenças da Audiencia Nacional a criminalizarem o independentismo galego. O público acaba por dar um fechado aplauso ao grito de “Que voltem à casa!”. Ponho estes exemplos para esclarecer que era este um encontro auspiciado pelo governo bolivariano da Venezuela mas em absoluto institucional no sentido de fossilizado, de limitado nos temas, de censurado, de controlado.

Num outro sentido, valorarmos a situação das políticas praticadas hoje na Venezuela pode ser difícil para quem gostar do branco sobre negro. Se algo aprendi é que as revoluções são processos vivos, impregnados de grises. Devo confessar que sempre imaginara “a revolução” como um ponto final, como um assalto ao poder e as suas lógicas. Como era de esperar, nem sempre é assim. Antes de mais, a revolução venezuelana é, como todas, um desafio para as classes dominantes que veem em perigo os seus privilégios. Porém, se na Cuba revolucionária os dissidentes moram em Miami, na Venezuela estão dentro, protegidos nos seus bairros altos de mansões com heliportos. Os escuálidos, como chamou Chávez esses brancos magros e ricos, mantêm-se à espreita, a lutarem na contra, e deslocam ao país para uma foto fixa inquietante, como se tudo estivesse pronto para uma guerra civil. Daí, a presença ameaçante de guardas armados nas ruas, a escolta constante a que nos vimos submetidas como convidadas do governo. Mas é inegável que a vida da classe trabalhadora mudou sensivelmente.

 "A liberdade começa cá: quando a pessoa não só realiza uma atividade que lhe dê o sustento, mas considera que aprende algo significativo; quando a pessoa acha que vive uma vida que paga a pena de ser vivida".

Visitamos projetos comunais no cinto periférico dessa urbe de 7 milhões de habitantes que é Caracas. Uma povoação marginal que vivia na extrema pobreza, acossada pela droga e a miséria, é hoje um assentamento rural onde as mulheres regem uma fábrica têxtil e cosem 400 “morralitos” por semana. Adorei o tom de orgulho com que uma das operárias nos explicou que elas não se especializam num só trabalho como na fábrica capitalista, mas que aprendem todos os aspetos da elaboração do produto, do desenho ao remate de cada peça e mesmo a repararem a máquina de coser. A liberdade começa cá: quando a pessoa não só realiza uma atividade que lhe dê o sustento, mas considera que aprende algo significativo; quando a pessoa acha que vive uma vida que paga a pena de ser vivida.

Se me perguntassem sobre o que mais gostei de Venezuela, não falaria dos olhos do comandante impressos em tantos prédios, nem da música omnipresente a ritmo de salsa, nem da exuberância e o explícito das mensagens corporais nem, muito menos, do excesso de plásticos duma sociedade que parece viver de costas ao seu espetacular meio natural e onde a austeridade do socialismo alterna com um consumismo voraz. Se me perguntassem, ver-me-ia obrigada a reconhecer que às vezes até me asfixiava o peso de tanta consigna em favor de Chávez, embora o compreenda, mas com o que não podo entusiasmar-me: já se sabe que o povo galego é sempre hipercrítico, mesmo com aquilo que admira. Se me perguntassem, diria que adorei os projetos de auto-gestão, como o Campamento de pioneros. Perante a escasseza de vivendas, alguns grupos urbanos organizam-se e apresentam a Chávez a possibilidade de fazer-se com o espaço dalgumas antigas fábricas no coração da cidade. Ao grito, já famoso de “exproprie-se!”, o governo entra em cumplicidade com a demanda e proporciona os materiais. Será a vizinhança quem construa literalmente as vivendas; quem aprenda a priorizar necessidades, a desenhar e a edificar. E a dignidade é infinita. No caminho, de tanto discutirem sobre como gastar o dinheiro, de tanto implicarem-se na ajuda mútua, de tanto falarem e discutirem, levantam, para além de casas, uma rede organizada... e politizada. Venezuela é basicamente isso: uma sociedade politizada, no sentido duma sociedade onde as pessoas sabem que a qualidade das suas vidas depende da sua capacidade de se aliarem e construirem juntas. Os governantes e os regimes podem cair; a organização interna dessa sociedade é já imparável. É nesse sentido que cantam que Chavez, em vez de morrer, o que fez foi multiplicar-se.

"Ao grito, já famoso de “exproprie-se!”, o governo entra em cumplicidade com a demanda e proporciona os materiais. Será a vizinhança quem construa literalmente as vivendas; quem aprenda a priorizar necessidades, a desenhar e a edificar. E a dignidade é infinita".

Também aprendi em Venezuela a pôr-lhe couto aos intelectuais em benefício dos movimentos sociais. Obviamente muitos de nós gostamos do estudo e do debate de ideias e nada têm de negativo as longas horas dedicadas ao esforço de assimilar textos e de contribuir ao pensamento achegando matizes. Boa parte do progresso da humanidade vem precisamente dessa tarefa intelectual. Contudo, talvez esteja super-valorada. Porque a ego-latria, a arrogância e a passividade perante as revoluções como a que discorria aos nossos olhos são, preciso é reconhecê-lo, vícios intelectuais. Precisamos sobretudo movimentos sociais bem articulados, onde a crítica se exerça de forma radicalmente democrática e as grandes palavras se concretizem e mudem as existências. Sem dúvida quero uma revolução semelhante para o meu país, onde tendemos tanto ao ceticismo nihilista. 

Quando, à minha chegada, pendurei do Facebook um pequeno comentário positivo, alguém saltou a dizer que na Venezuela as meninas querem operar-se os peitos e ser princesas. Nada é branco ou negro e nenhuma revolução pode blindar-nos contra os valores dominantes. A cirurgia ao gosto do consumidor não faz parte do que entendo por uma vida que pague a pena de ser vivida mas, quando ligo a TV em plena campanha de natal, teria que estar cega para não olhar todas as formas do consumismo cá. A revolução é um processo perfectível, não um estado onde instalar-se comodamente. Mas, por enquanto a revolução chegar, já foi um orgulho e uma festa escutar o presidente Maduro reconhecer especificamente o povo galego no seu discurso na concorrida marcha que percorreu as ruas de Caracas a segunda passada. Independência e socialismo: que assim seja!

Comentarios