Opinión

Carta aberta á Universidade de Santiago de Compostela: não a Garzón na USC!

O juiz estrela Baltasar Garzón ocupou durante anos as portadas dos jornais. Afizemo-nos a reconhecer a sua cara: óculos, cabelo incipientemente cano, fato elegante e elevada estatura. Era a representação masculina do sucesso profissional.

 "O juiz abria formalmente a porta para ilegalizar o independentismo basco ou qualquer outra ação organizada em conflito com os interesses do Estado".

O juiz estrela Baltasar Garzón ocupou durante anos as portadas dos jornais. Afizemo-nos a reconhecer a sua cara: óculos, cabelo incipientemente cano, fato elegante e elevada estatura. Era a representação masculina do sucesso profissional. Em algum momento tomou decisões estranhas para quem acreditar que a justiça se pratica com venda nos olhos, como concorrer às urnas nas listagens duma candidatura política, mas não serei eu quem o critique por fazer públicas as suas ideias. Depois foi mundialmente conhecido por emitir ordens de prisão internacionais contra o ex-presidente de Chile, Pinochet, por acusar de genocídio a diversos militares argentinos daquela funesta ditadura ou mesmo por solicitar a permissão para processar o primeiro ministro italiano Berlusconi. Muitas pessoas começaram a suspeitar da sua egolatria: parecia um redentor de todas as causas possíveis. Mas o pecado da ambição é tão humano que também não merece redundar nas críticas. O assunto é que, enquanto se fazia famoso pela defesa dos direitos humanos, enquanto cobrava grandes quantidades em condições pouco claras por ditar conferências e cursos nas universidades prestigiosas do mundo, o juiz também fazia trabalho dentro dos esgotos do poder. Em 2002 conseguiu ilegalizar Herri Batasuna pelas suas "relações" com o movimento abertzale. Todo o mundo conhecia essa relação ideológica, mas o juiz abria formalmente a porta para ilegalizar o independentismo basco ou qualquer outra ação organizada em conflito com os interesses do Estado. E da sua intervenção resultou o fechamento dos jornais Egin e Egunkaria, ou da radio Egin Irratia, tornando num agente da espanholização contrária ao ativismo político e cultural basco. Talvez convencido do seu caráter messiânico, em 2003 empreendeu ações contra o PCE-r pelas suas atividades de apoio ao GRAPO, tais como a fixação da tática e da estratégia da luta armada ou a seleção dos responsáveis dos comandos militares. Finalmente, segundo documentos de Amnistia Internacional, Garzón viu-se envolvido no amparo a torturas e foi por isso denunciado internacionalmente: nos processos que instruía as pessoas presas por motivos políticos testificavam depois de terem sido literalmente esmagad@s nos calabouços sem que o tal juiz denunciasse.

"Da sua intervenção resultou o fechamento dos jornais Egin Egunkaria, ou da radio Egin Irratia, tornando num agente da espanholização contrária ao ativismo político e cultural basco"

Esse senhor visita-nos nos próximos dias. Nem é academicamente egrégio nem é já magistrado. Mas a nossa Universidade convida-o. Talvez esteja disposto a viajar a Compostela pelo puro prazer de falar, pagando ele o bilhete de avião, o taxi até a Faculdade de Psicologia e a sua comida num restaurante da cidade. E nesse caso a Universidade só deverá explicar o porquê de outorgar o privilégio de dar a palavra, o direito a falar, a alguém que não se distinguiu precisamente pelo trabalho calado e silente próprio de todo ofício bem exercido. Talvez o ato em que intervenha guarde alguma relação com a difusão do conhecimento que a Universidade tenta garantir com independência dos erros das pessoas que transmitem esse conhecimento. Porém, quase me atrevo a imaginar que não virá gratis et amore. Podemos supor que há dinheiro público desta Universidade precária que suportamos disposto para sufragar a palestra ou palestras de Garzón, e nem só a palestra. Essa Universidade que não pode repor os postos de trabalho do pessoal que se reforma, essa Universidade que deixa esmorecer as ajudas e contratos post-doutorais, supostamente destinados a nutri-la de nov@s investigador@s, a que deixa na rua tant@s docentes com o título de doutoramento entre os dentes, ou tantas pessoas que noutros postos desempenham com correção os labores que lhe são encomendados, essa instituição tem dinheiro para Garzón. A Universidade que recorta nas pagas d@s trabalhador@s, a Universidade que fecha as portas dos seus centros em períodos não letivos para poupar luz, a Universidade do barato, do "nestes tempos já não podemos", a Universidade que exige às suas e aos seus investigadores que assegurem financiamento externo antes de organizar um grupo de investigação ou um curso de verão, convida o senhor Garzón. Ainda bem que já não exerce como magistrado porque às pessoas que trabalhamos por uma Galiza soberana começariam a tremer-nos os dentes perante a possibilidade de que o juiz estrela aproveitasse a estadia para ilegalizar as organizações que, a seu ver, se mostrassem solidárias com o que a Audiência Nacional chama terrorismo. 

"Vêm-me à cabeça centos de nomes que podem pronunciar magníficas palestras. Nenhuma delas suporta o peso às costas de ter ilegalizado, condenado e excluído aos movimentos de base popular".

Às vezes, a Universidade, que é entusiasmo, que é curiosidade, que é vontade de saber, que é compromisso por interessar outras pessoas nos mesmos estímulos intelectuais que nos seduzem, às vezes, digo, essa universidade que deve ser o território da liberdade e da justiça, fica retratada perante a sociedade como apenas um reduto do poder que reproduz a pior cara do modelo em que mergulhamos: interesses turvos, competitividade, exercício de mando e de liderado, individualismo e falta de autocrítica. Seguramente poderia convocar-se um ato de protesta onde participássemos de maneira maciça tod@s @s que sofremos os recortes da Universidade para silenciar o senhor Garzón com os nossos berros. Porém, gostaria de acreditar que, entre o equipo que nos governa, ainda fica o bom juízo, o compromisso com a educação pública -que é de tod@s-, e com a investigação -que é precisa para satisfazer as mais íntimas liberdades e expectativas humanas- como para retirar esse convite. Se se tratar de organizar palestras, vêm-me à cabeça centos de nomes -de pessoas com anos de experiência, com trajetórias na educação e nos movimentos sociais, com profundo conhecimento do que é a justiça praticada com venda nos olhos- que podem pronunciar magníficas palestras. Nenhuma delas suporta o peso às costas de ter ilegalizado, condenado e excluído aos movimentos de base popular. Se se querem nomes, é apenas perguntar. 

Comentarios