Opinión

Viva Amâncio Ortega!

Faz alguns meses que se levantou uma grande polêmica a propósito duma doação de 320 milhões de euros para a sanidade espanhola, que certos comentaristas e organizações políticas consideraram improcedente porque implica viver da caridade, ao tempo que outros demandaram praticamente um desagravo a esta magnânima personagem.

Vai já para alguns anos, numa campanha eleitoral acercou-se a mim um militante de SAIN (Solidariedade e Autogestão Internacionalista), um partido meramente testemunhal de inspiração cristã, e que se move nas coordenadas da sacristia e da esquerda antimarxista e centralista, nisto último muito em consonância com a sua procedência. Dissera-me que era intolerável a exploração que estava praticando Amâncio Ortega. A minha resposta foi perguntar-lhe porque centravam a sua fobia neste empresário galego, e creio lembrar que me falaram das empresas que destruía e da deslocalização da produção a outros países. Eu disse-lhes que isso é próprio de todo o capitalismo transnacional e se estavam tão interessados em lutar contra isto, não devem focar o problema numa pessoa, que iniciou os seus exitosos negócios nesta terra, senão no que está a acontecer com a dinâmica dos grandes capitalistas.

Amâncio Ortega não é nenhum ladrão, que eu saiba, senão que aproveita, em benefício próprio, as facilidades legais de apropriação de plus valor que lhe dá o sistema político espanhol, europeu e mundial, que permite uma acumulação de capital nunca antes conhecido na economia. Se um empresário não aproveita estas vantagens, estaria jogando em desvantagens frente aos seus competidores, que o levariam progressivamente à sua desaparição como empresa. Portanto, todas as empresas têm que procurar não jogar em desvantagem com as demais, por necessidade de subsistência. Este não é um problema ético de bondade ou malícia das pessoas, senão um problema econômico e político.  

Creio que cumpre reconhecer que as desigualdades sociais são em certo modo naturais no sentido de que ainda que todos valhamos para algo não todos valemos para o mesmo, mas todos devemos ter garantidas as necessidades básicas elementais. Umas pessoas podem realizar-se no trabalho, e eu conheço pessoas que estão mais contentos na sua empresa que numas vacações na Galiza, na Espanha ou num país estrangeiro. Outros gostam de viajar quando lho permitem os seus ingressos e não ter problemas, etc. etc. Ora bem, o que é, a todas luzes improcedente são as diferenças abismais que existem a nível mundial entre umas pessoas e outras, muito prejudicial à longa para o próprio sistema. 

O número de multimilionários incrementou-se escandalosamente nas últimas décadas: de 423 que havia no ano 1996 passou-se a 2095 em março de 2020, e a sua riqueza equivale ao 12 por cento do PIB de todo o planeta, enquanto que em população somente representam o 0,00003 por cento. Aliás, o patrimônio dos mais ricos não deixa normalmente de agrandar-se, ainda que em 2020 tiveram um retrocesso, como todas as demais capas da população, devido ao coronavirus. É evidente que se os demais lhe compram menos, eles vendem menos e ingressam menos. E isto serve-nos para tirar a conclusão seguinte: se os consumidores são quem os engrandecem, algum direito terão a ser recompensados em contrapartida da sua contribuição á riqueza dos empresários. Temos, em consequência, que pôr em valor o status de consumidor reforçando o seu valor e o seu contributo à viabilidade do sistema. Os empresários mais ricos, entre os quais figura Amâncio Ortega neste momento no posto 9º, costumam fazer doações muitas vezes muito generosas, para o standard duma pessoa do comum, que têm como consequência, independentemente da intenção pessoal, provocar uma reação de agradecimento por algo que se considera não-devido. Mas uma sociedade deve fundamentar-se nos direitos das pessoas, e não nas esmolas, porque uma sociedade de esmoleiros não é uma sociedade digna.

Muitos destes grandes ricos, aproveitam-se da engenharia fiscal em benefício próprio pagando menos em termos porcentuais que uma pessoa de classe média baixa e da deslocalização de empresas para incrementar os ganhos; recorrem à fabricação de produtos kleenex, muito presente no caso de Amâncio Ortega, em conflito com a luta em prol da saúde do planeta e ao recurso aos paraísos fiscais para manter o seu dinheiro a bom recato, ou acodem também à obsolescência programada para converter os clientes em contribuintes periódicos para incrementar as suas ganâncias, incrementando o consumo além da razoável, etc. Temos ainda que humilhar-nos e reverenciá-los porque nos dão uma esmola de vez em quando?

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