Opinión

Um discurso i-real

O adjetivo irreal significa o que não é real, o que não reflete a realidade, o que está fora da realidade, o que é imaginário, fictício, fantasioso, ilusório, inexistente...

O adjetivo irreal significa o que não é real, o que não reflete a realidade, o que está fora da realidade, o que é imaginário, fictício, fantasioso, ilusório, inexistente... Aqui tomamo-lo como aquilo que não reflete a realidade.

A filosofia teórica e as ciências tem como missão refletir o que é, ajustar-se ao que é a realidade, refleti-la fielmente, e, com este objetivo propõem modelos teóricos e hipóteses sobre o que são as cousas, que depois serão criticadas pela razão e/ou verificadas pela observação e a experimentação científica. A filosofia prática, pela contra, versa sobre o que deve ser, sobre ideais inexistentes que se devem realizar, pôr em prática, e somente trata do que é a modo de meio para propor modelos de moralidade ou de sociedade que sejam viáveis em aras de conseguir um ideal de perfeição moral ou de sociedade. Tanto a ética como o direito e a política têm muito que ver com os valores e com os modelos de sociedade e de humanidade que se pretendem realizar.

"Quando estamos ante uma instituição banhada em casos de corrupção e que se nega a dar conta deles, esses conselhos merecem"

A monarquia parlamentar têm fundamentalmente cometidos de representação e não executivas, e mantém-se se cumpre duas funções de moderação, exemplaridade e integração. Os discursos reais limitaram-se até agora, tanto com João Carlos I como com Felipe VI, a falar de lugares comuns, de obviedades, de vulgaridades, e a fugir dos temas mais espinhosos e que mais preocupam aos cidadãos, procurando falar principalmente do que deve ser, oferecendo doses elevadas de moralina para consumo de incautos. Cingindo-nos ao de Felipe VI, utilizou 12 vezes a palavra deve, e vários outros termos relacionados com a ética, como é necessário que, requere-se, demanda de retidão e integridade, temos que, tenhamos que,  ... Não haveria que objetar nada a isto, se a pessoa ou instituição que dá os conselhos ou leciona normas de moralidade tem a legitimidade moral e a credibilidade social necessárias para fazê-lo, mas quando estamos ante uma instituição banhada em casos de corrupção e que se nega a dar conta deles, esses conselhos merecem pouca credibilidade. A sua irmã e o seu cunhado vão ser julgados por espoliar as instituições em benefício próprio, supomos que a sua irmâ a livrará a doutrina Botim, porque o fiscal defensor já fez o seu trabalho; e o seu pai, o rei emérito, levou uma conduta que de exemplarizante não tem nada, ao tempo que nos lecionou com moralina cada Natal durante perto de quarenta anos; caçava elefantes ao tempo que presidia associações que os defendem, e ossos borrachos para que o seu tiro desse no alvo, e, o mais sangrante, é acusado de amassar uma enorme fortuna a costa do erário público, que não explicou nem quer explicar e muito menos devolver aos sofridos cidadãos, porque a opacidade foi sempre a norma de conduta durante todos os anos em que esteve na cadeirão, ao igual que a sua super-proteção pelas instituições. Por que agora nos pede o seu filho, que silencia todos estes fatos e de momento não demonstrou nada, que tenhamos fé nas suas palavras e na instituição que representa? Por tanto, creio que não está legitimado para dar lições de ética aos cidadãos espanhóis.

Outro dos eixos do seu discurso foi a unidade de Espanha, e tão-pouco haveria nada que objetar se essa unidade que pregoa estivesse baseada na integração voluntária de todos os afetados e no respeito á diversidade, e não na imposição duma maioria sobre um povo minoritário, mas esta apelação á unidade e essas menções da diversidade tão-pouco merecem credibilidade numa instituição que foi absorventemente centralista durante toda a sua história e que foi quem matou a diversidade que existia no Estado espanhol antes da entronização de Felipe V, o neto de Luis XIV, o «Rei Sol», o rei mais centralista do mundo e com o modelo mais calcado de absolutista, que proclamou l’Etat c’est moi. Incluso antes de que o seu neto tiver assegurada a sua entronização, já proclamou em 1707, que se propunha "reduzir todos os meus Reinos de Espanha á uniformidade dumas mesmas leis, usos, costumes e tribunais, governando-se igualmente todos pelas leis de Castela, tão louváveis e plausíveis em todo o Universo" (Decreto de 29 de junho de 1707, em Novísima recopilación de las Leyes de España, T. II, Madrid, 1805, liv. III, tít. III, lei Iª). Foi com este rei com o que se impuseram os decretos de Nova Planta que terminariam com a implantação dos sistemas unificadores e centralizadores em Catalunya, Aragão, Valência e Malhorca, centralismo e unificação que se impuseram progressivamente também no Norte de Espanha, no País Vasco e Navarra, a partir de sucessivos decretos a partir de 1832, por meio do sangue e o fogo, que supuseram as duas guerras carlistas, até que Alfonso XII, pode proclamar após a batalha de Somorrostro o 13/03/1876, dirigindo-se aos soldados a respeito das morte produzidas em combate: “todos estes maus embora espantosos e por todo extremo lamentáveis, ficam reduzidos ao espaço duma sozinha geração; mas fundada polos heroísmo a unidade constitucional de Espanha, até as mais remotas gerações chegará o fruto e as bendições das vossas vitórias. Poucos exércitos tiveram ocasião de prestar um serviço de tal importância. Tanto sangue, tantas fadigas, mereciam este prêmio” (GARCÍA VENERO, MAXIMIANO, Historia del nacionalismo vasco, 1793-1936, Madrid, 1945, pp. 188 ss). Vários decretos consumaram este centralismo e unificação no País Vasco e Navarra, que perderam os foros pelos que se vinham governando e a sua diversidade ficou reduzida ao concerto e a quota, que agora o Rivera pretende também liquidar. Por que Você não protesta contra este intento de aniquilação dos direitos históricos destas comunidades? Ou é que os povos não tem direitos e a maioria de espanhóis pode aniquilá-los quando lhe vier em ganhas apoiando-se no voto da maioria?

"Creio que não está legitimado para dar lições de ética aos cidadãos espanhóis"

Como suponho que Felipe VI conhece a história de Espanha, e, por isso, nos recomenda a todos conhecê-la e recordá-la, vou terminar este apartado com algum apontamentos mais. O primeiro, uma lembrança á divisão territorial provincial imposta em 1824 por Javier de Burgos, durante o reinado do rei traidor Fernando VII, que importou da jacobina França o modelo centralista que deixou a Galiza dividida em quatro províncias e ao Estado espanhol em quarenta e nove, governadas pela deputações, os governos quiçá mais corruptos e clientelistas da história de Espanha, divisão que foi a origem dos movimentos de defesa do provincialismo em 1846, do regionalismo na década dos sessenta do século XIX e do nacionalismo a princípios do século XX. Como bem sabe a sua Majestade, ou deveria saber, os atos de agressão contra um coletivo provocam um sentimento de frustração e e repulsa, e, a seguir, um movimento de autodefesa frente a ela. Ou é que também Você o atribui a maquinações perversas e egoístas dos líderes localistas e ás manipulações das populações afetadas, sem que exista causa alguma objetiva que provoque este movimento? Também suponho que saberá ou deveria saber, que tanto Catalunya como Euskadi e Galiza sofreram dura repressão, durante e depois da nefasta Guerra Civil que desencadearam os rebeldes contra a República, com o apoio das forças monárquicas, tanto nas suas vidas como na sua língua, cultura e instituições políticas. Suponho que também saberá, ou deveria saber, que, principalmente durante os últimos governo do PP, por não aludir á LOAPA e a outras medidas já anteriores, se produz uma re-centralização de competências, uma campanha hostil contra o Estatuto de Catalunya, seguida do pronunciamento dum Tribunal Constitucional constituído dum jeito anormal, que botou abaixo a filosofia estatutária da Transição política, e uma espanholização sem precedentes nas suas comunidades, tentando debilitar ainda mais as suas já muito degradadas línguas, culturas, e instituições  próprias. Por que Você não levantou a sua voz face todas estas tropelias contra os nossos povos? Não sabia nada ou não quis inteirar-se? Você que deveria moderar e integrar, por que não se ofereceu para intermediar frente a toda esta legislação e prática hostil quando os cidadãos destas comunidades se manifestavam contra todas estas políticas? Em realidade, Você só atua como o monarca do povo espanhol, mas sente-se alheio ás preocupações e aspirações dos demais povos do Estado espanhol.

"No discurso i-real o único povo que é citado, e várias vezes, é o povo espanhol, ao tempo que os demais povos do Estado não têm cabida no seu imaginário mental"

Creio que esta vaga de centralismo e uniformização representou uma etapa de grande dor para os povos afetados e também para o povo espanhol, e que deveria fazer mais cauto ao Rei á hora de falar de erros históricos, que parece atribuir aos que se viram despossuídos dos seus sistemas forais, quando o há que carregar no haver da monarquia, que com a importação a Espanha do sistema centralista francês, fez esmorecer a rica diversidade existente no Estado espanhol. Por outra parte, no discurso i-real o único povo que é citado, e várias vezes, é o povo espanhol, ao tempo que os demais povos do Estado não têm cabida no seu imaginário mental; desconhece, por tanto, a realidade espanhola, que não pode abeirar-se falando duma imprecisa e ambígua diversidade, senão que deve traduzir-se numa diversidade real e concreta que deve ter as suas vias de expressão como tal.

Outro eixo do seu discurso é o da querença, admiração e respeito por Espanha, palavra que cita nada menos que 16 vez, por ser, diz, um sentimento profundo, uma emoção sincera e um orgulho muito legítimo. Eu entendo que uma instituição que tem por herança privilégios alheios aos demais mortais, que tem um salário garantido de por vida sem que se tivesse em conta, no seu acesso, nem o seu mérito nem a sua capacidade, que está protegido por cláusulas de intangibilidade duma Constituição limitada na sua democracia pelos poderes fáticos, que pode premiar no seu décimo aniversário a sua infância á sua filha com o tosão de ouro, que não tem as preocupações dos demais mortais a respeito do paro, salário, que tem um pai que cobra perto de 300.000 euros,  á parte do dispêndio em segurança para assistir a eventos esportivos, vacações continuadas, sem fazer nada de proveito para o país, ao tempo que os outros pensionistas não alcançam nem os trinta mil; uma irmã que vê como o seu soldo se incrementa um 200 por cem, as grandes empresas que viram incrementar os seus benefícios extraordinariamente, muitas vezes a expensas do soldo dos seus empregados, os setores extrativos parasitários que viram que a crise não lhes afetou para nada, etc., sintam orgulho de pertencer a Espanha, faltaria mais!; mas aos mais de 4.300.000 parados, dos quais perto de 1.900.000 não tem ingressos nenhuns, aos pensionistas que têm as suas pensões congeladas e que muitas vezes se tem que dedicar grande parte das suas retribuições para ajudar aos seus familiares, aos nossos moços e moças universitários e parte dos demais trabalhadores que se vêem condenados a emigrar porque no seu país não vêm futuro nenhum, aos trabalhadores que viram como o seu salário se viu reduzido muitas vezes á metade e que perderam praticamente todos os seus direitos, a toda a nossa mocidade que não pode emancipar-se e planificar o seu futuro, aos milhares de despejados das suas vivendas sem alternativa habitacional alguma vítimas duma crise na que eles não participaram, aos autônomos que viram minguados os seus ingressos como conseqüência duma crise que não se soube resolver, etc., Você teria que explicar-lhe quais são as razões pelas quais devem estar orgulhosos de Espanha. O patriotismo não é uma proclama vácua senão que unicamente tem algum sentido se se entende como um amor a um país que atende as suas necessidades e aspirações da gente, um país que lhes permita viver dignamente, e isso é o que não se dá na sua querida Estanha..

"Falta Você da convivência e a concórdia em democracia e liberdade, mas, tão-pouco a este respeito é Você o indicado para dar lições, porque para isso o primeiro que teria que fazer seria legitimar o seu posto nas urnas"

Fala Você de respeitar a lei e a Constituição, mas eu creio que seria melhor que estas respeitassem a vontade do soberano que é sempre o povo, e onde há vários povos deve haver vários soberanos, e estivessem ao serviço dos cidadãos, porque são ou deveriam ser elas as filhas da vontade popular existente nos diversos povos e não as patroas e objetos de culto ante os que há que ajoelhar-se. A Constituição e a lei não estão hoje ao serviço da maioria social e, por isso demanda a sua reforma e ou substituição por outra que responda aos anseios da cidadania. Quiçá deveria ter em conta também todas as rupturas da lei e não só as duma parte. 

Falta Você da convivência e a concórdia em democracia e liberdade, mas, tão-pouco a este respeito é Você o indicado para dar lições, porque para isso o primeiro que teria que fazer seria legitimar o seu posto nas urnas e não adquiri-lo por herança. Tão-pouco a sua família é um modelo neste aspeto. Lembre que o seu trisavó, Afonso XII, foi imposto pelo pronunciamento militar de Martínez Campos, que terminou com a Primeira República e instaurou o Regime corrupto da Restauração que era um simulacro de democracia. Lembre também que o seu bisavó, Alfonso XIII, impulsou o golpe militar de Primo de Rivera; que o seu avó se ofereceu para lutar no exército franquista contra a democracia da Segunda República; que o seu pai foi entronizado pelo ditador Franco, e que lhe replicou a Suárez que se este tinha a legitimidade que dão os votos, ele tinha a legitimidade que dá ser  herdeiro duma família que levava 700 anos no poder, e que reinou em Espanha durante perto de quarenta anos sem legitimidade de origem e eu diria que tão-pouco de exercício.

Além do que Você disse também são eloqüentes os seus silêncios: o paro, a corrupção, a violência contra as mulheres, e também aqueles temas aos que se refere de passada, como as desigualdades sociais, que situam a Espanha de campeã européia, porque, naturalmente, o mais importante é Espanha e que todos esta palavra pronunciemos como um esconjuro a cada momento. Já vê Majestade, como Você não reflete a realidade do seu país, e que, por tanto, está fora desta realidade, e não é surpreendente tendo em conta que já se formam e vivem á margem dela., o qual os incapacita para entendê-la. É sintomático que não aluda para nada a uns sete milhões de pessoas que reclamam poder exercer o direito de decidir em Catalunya, nem sequer á maioria de espanhóis que reclamam uma reforma da Constituição em clave federal. Convença-se, Majestade, que o seu discurso é i-real?   

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