Opinión

Proibição da leitura e traduções vernáculas da Bíblia (II)

 

A proibição estende-se por Inglaterra e Alemanha

 

No século XIV a Igreja passa por uma crise de corrupção generalizada, que se traduzia, a partir deste século, numa obscena simonia para fazer frente ao financiamento eclesial, entre outras cousas, para a construção da Basílica de São Pedro. No seu seio surge o movimento dos Reformados ou Protestantes, que vai dar lugar a uma nova cisão entre os cristãos, com Lutero ao frente, no século XVI, ao que responde o catolicismo com a Contra-Reforma, que se vai concretizar no Concilio de Trento (1545-1563), um dos mais negativos para o Catolicismo.    

 

Wicliffe foi o primeiro autor que fez uma tradução de toda a Bíblia para o inglês, terminada no ano 1382, servindo-se da Vulgata de Santo Jerome. As razões que o impulsaram foram que “visto que a Bíblia contém todo o que é necessário para a salvação - é necessária para todos os homes, não só para os sacerdotes. Ela sozinha é a lei suprema para regular a Igreja... sem tradições e estatutos humanos. Cristo e os seus apóstolos ensinaram o povo na língua melhor conhecida por eles. Por isso, a doutrina não deveria estar só em latim senão na língua comum. O laicado deveria entender a fé e as doutrinas da nossa fé estão nas Escrituras, e os crentes deveriam ter as Escrituras na língua que eles entendem perfeitamente(1).

 

Wilcliffe, primeiro autor que, em 1832, fez uma tradução da BIblia para o inglês: “visto que contém todo o que é necessário para a salvação, é necessária para todos os homes, não só para os sacerdotes

 

No século XII fundaram-se as comunidades religiosas masculinas, chamadas dos beguinos, e femininas (beguinas), atribuídas a um sacerdote de Lieja Lambert le Bègue. Pregavam o arrependimento e levavam uma vida ascética e de pobreza. Na Alemanha, Carlos IV (1355-1378), rei de Boêmia e Santo Romano imperador, “promulgou um edito para quatro inquisidores contra a tradução e a leitura da Escritura à língua germânica. O edito foi provocado polas atuações dos beguinos e beguinas. Beltoldo, arcebispo de Magúncia, promulgou um edito contra a impressão de livros religiosos em alemão, dando entre outras razões a surpreendente de que a língua germânica era inapropriada para transmitir corretamente ideias religiosas, e, portanto, seriam profanadas. O edito de Bertoldo teve alguma influência, mas não pudo impedir a divulgação e publicação de novas edições da Bíblia. Os dirigentes da Igreja recomendaram alguma vez ao laicado a leitura da Bíblia, e a Igreja guardou silêncio enquanto que estes esforços não se converteram em abusos(2). A afirmação de que a língua alemã não vale para transmitir ideias religiosas pode surpreender a primeira vista, mas é o que normalmente acontece em todos os povos colonizados ou aqueles que estão em contato com uma língua A mais prestigiada, como neste caso, o latim. No ano 1486, o arcebispo de Magúncia proíbe que se imprimam cópias da Bíblia sem autorização da Igreja: o célebre «Imprimatur» ou «Nihil obstat».

 

O terceiro Sínodo de Oxford de 1408 proíbe a leitura das poucas cópias da Bíblia de Wicliffe em circulação. No cânon 2 diz-se: Fica proibido “sob pena de de interdito local, que os eclesiásticos ou os seculares  permitam que ninguém pregue sem autorização, nas igrejas ou nos cemitérios(3). O cânon 6 estabelece que ninguém pode publicar um livro sem autorização dos acadêmicos de Oxford; e o cânon 7 decretou que não se deve permitir a tradução da Bíblia em língua vernácula se não está aprovada polo bispo, sob pena de incorrer em excomunhão maior e de ser castigado como reio de heresia. “É perigoso, como declara São Jerome, trasladar o texto das Santas Escrituras dum idioma para outro, dado que não é fácil na tradução preservar exatamente o sentido em todas as cousas. Por conseguinte, mandamos e ordenamos que de aqui em diante ninguém traduza o texto das Santas Escrituras ao inglês ou a outro idioma qualquer como livro, opúsculo, ou folheto, desta classe ultimamente feito no tempo de João Wicliffe ou desde então, ou que de hoje em diante possa ser feito, seja parcial ou total, pública ou privadamente, sob pena de excomunhão, até que tais traduções tenham sido aprovadas e autorizadas polo Concílio Provincial. Quem obrar doutra maneira será castigado como um instigador de heresia e erro” (4).. Não se deixa resquício nenhum para que o interessado possa ler os livros da Bíblia, a exceção dos que aprove a Igreja. Como toda tradução dalgum modo desfigura o pensamento original, a solução que oferece a Igreja é não traduzir e, por tanto, ignorar ou ler um livro que for convenientemente expurgado. Aplicado ao ensino, equivaleria impedir-lhe ao alunado ler livros em francês ou inglês porque podem não compreender bem os conceitos. 

 

O terceiro Sínodo de Oxford de 1408 proíbe a leitura das poucas cópias da Bíblia de Wicliffe em circulação

 

No ano 1412, o arcebispo de Canterbury, Thomas Arundel, escreve-lhe uma carta ao papa João XXIII (1410-1415), mais tarde declarado anti-papa, na que define o filósofo e teólogo escolástico John Wicliffe (1320-1384), como “esse canalha pestilente John Wicliffe, de condenável memória, o precursor e discípulo do anti-cristo que, como complemento da sua maldade, inventou uma nova tradução das escrituras na sua língua materna(5). O Concilio Ecumênico de Constança celebrado nos anos 1414-1418, postumamente “declara a John Wicliffe como herege, condena a sua memória e ordena que os seus ossos sejam exumados. Alem disso, começou um processo, pola autoridade ou por decreto do concílio de Roma, e por mandado da igreja da Sê apostólica, após o devido intervalo de tempo, para a condena do mencionado Wicliffe e da sua memória. Foram enviados convites e editos convocando os que desejassem defendê-lo a ele e a sua memória. Porém ninguém apareceu que quiser defendê-lo a ele ou a sua memória. Foram examinados os testemunhos polos comissários nomeados polo papa reinante João XXIII e por este sagrado concílio, a respeito da sua impenitência e obstinação final. Proveram-se as provas legais, de acordo com todas as devidas formalidades, como a disposição da lei exige numa matéria desta classe, tocante à sua impenitência e obstinação final. Isto foi provado polas indicações claras das legítimas testemunhas. Este santo sínodo, portanto, a instâncias do procurador fiscal e dado que se emitiu um decreto de que a sentença deveria ser ouvida neste dia, declara, define e decreta que o citado John Wicliffe foi um notório e obstinado herege que morreu na heresia, e e anatematiza-o e condena a sua memória. Decreta e ordena que o seu corpo e ossos devem ser exumados se podem ser identificados entre os cadáveres dos crentes, e ser espalhados em todas as direções desde o lugar de cremação da igreja, de acordo com as sanções canônicas e legais(6). A ausência de candidatos para defender os chamados hereges explica-se polo clima de repressão imperante no seio da sociedade, que poderia converter em suspeitoso a quem ousar defender uma pessoa anatematizada e condenada. O zelo contra os dissidentes ideológicos provoca que nem sequer deixem em paz os mortos, senão que são exumados e queimados para escarmento das gerações presentes. 

 

O primeiro autor que traduziu a Bíblia do hebreu e do grego para o inglês foi William Tyndale (1494-1536), de tendência pró-reformadora. Sentindo-se inseguro na Inglaterra para realizar a versão citada por não obter a licença das autoridades religiosas, marchou para Alemanha onde pudo terminá-la e imprimi-la antes de 1535, para depois introduzi-la secretamente na Inglaterra. A tradução foi proibida e Tyndale, atraiçoado por um inglês, Henry Phillips, foi arrestado e encarcerado no castelo de Vilvoorde, no que permaneceu 16 meses. O 6/10/1536 foi sacado da sua cela para ser executado. Amarrado a uma estaca, primeiro foi enforcado e depois o seu corpo queimado na fogueira. A sua tradução do Antigo Testamento ficou incompleta, sendo terminada polo seu ajudante Miles Coverdale que a publicou neste mesmo ano em Alemanha. Em 1543, o Parlamento inglês proíbe toda tradução da Bíblia salvo a de Coverdale, que pronto seria também condenado, ao igual que a de Wycliffe, e decretou que era um crime ler ou explicar em público as Escrituras. 

 

A imprensa, a inquisição espanhola, o livre exame e a Contra-Reforma 

 

No 1436 Johannes Gutenberg (ca. 1398 - 1468) desenvolveu um sistema mecânico de tipos móveis que produziu a revolução da imprensa moderna e a Igreja apresta-se a tomar medidas para controlar este meio de difusão. Aproximadamente no ano 1454, imprimiu-se a Bíblia por primeira vez na imprensa, permitindo uma rápida difusão de livros, que fez que as versões protestantes da Bíblia proliferassem. 

 

Espanha contribuiu em grande medida á repressão contra a publicação de bíblias proibidas, valendo-se da Inquisição espanhola e o Tribunal do Santo Oficio, aprovada por Sixto IV (1471-1484), papa aos que se lhe acusa de obsceno nepotismo, de impulso da venda de indulgências, da pratica da simonia, de proclamar o jubileu em 1475 com ânimo arrecadador, de ter seis filhos ilegítimos, um deles com a sua irmã, de ter imposto um tributo às prostitutas e de cobrar aos clérigos por ter amantes. A aprovação da Inquisição foi feita pola bula Exigit sincerae dovotionis, de 1/11/1478, a petição reiterada dos Reis Católicos ao Pontífice, com objeto de dotar-se dum instrumento de poder que lhe permitisse perseguir os desviantes políticos, sob pretexto do «perigo» judaizante (7), ou seja, dos judeus conversos ao cristianismo que continuavam praticando os seus ritos judaicos, e dos mourescos. O papa concede-lhe aos reis a faculdade para nomear três bispos, sacerdotes seculares ou religiosos em cada cidade ou diocese dos seus reinos de Espanha dotados, para a averiguação e castigo dos hereges, dos mesmos poderes que os Ordinários ou outros Inquisidores pontifícios. Atendendo às súplicas reais concede-lhes aos Reis Católicos a faculdade de designar: “três bispos ou superiores a eles ou outros varões probos presbíteros seculares ou religiosos de ordens mendicantes ou não mendicantes, de 40 anos cumpridos, de boa consciência e laudável vida, mestres ou bacharéis em Teologia ou doutores em Direito Canônico ou trás rigoroso exame licenciados temerosos de Deus, que vós crerdes em cada ocasião eleger em cada cidade ou diocese dos citados reinos, ou polo menos dous deles, ostentem tocante aos reios dos citados crimes, ou seus encobridores e fautores a mais completa jurisdição, autoridade e domínio de que gozam por direito e costume os Ordinários do lugar e os Inquisidores da maldade herética(8). Esta bula permitiu a mais brutal repressão e xenofobia contra os judeus conversos, mourescos, protestantes, bruxas, iluminados,... com o propósito de conseguir a pureza de sangue dos católicos únicos legitimados legalmente para habitar nos domínios da coroa espanhola. Torquemada “expulsou os judeus. Não há que expulsar também os mourescos? Assim acabar-se-iam em Espanha as falsas religiões e os falsos católicos. Só quedariam espanhóis em Espanha, homes da mesma raça e do mesmo sangue(9). O objetivo é a erradicação dos desviantes ideológicos, e os instrumentos, a tortura sobre o acusado com a finalidade de obrigá-lo a reconhecer o seu crime, o terror sobre a população e a pureza de sangue, uma medida racista que servirá de prólogo para o racismo dos séculos XIX e XX. Reconhecia o inquisidor da coroa de Aragón, Nicolau Eimerich, que “devemos recordar que o principal objetivo do juízo e pena de morte não é salvar a alma do acusado, senão promover o bem público e aterrorizar à gente (10). O principal instrumento para este objetivo terrorista era o secretismo, que protegia a pessoa do acusador ou delator impedindo que o acusado soubesse quem o acusava e de que o acusavam. 

 

"Não há que expulsar também os mourescos? Assim acabar-se-iam em Espanha as falsas religiões e os falsos católicos. Só quedariam espanhóis em Espanha, homes da mesma raça e do mesmo sangue"

 

A inquisição serviu também como um instrumento fiscal ao serviço do Estado que lhe dava via livre para confiscar os bens dos supostos hereges, como se deduz das cédulas emitidas polos reis aos inquisidores, das que apresentamos a seguinte: “Pedro de Badia, o meu receptor dos bens confiscados polo delito e crime da heresia e apostasia na cidade e bispado de Barcelona, eu fui informado como pondes pouca diligência no vosso ofício e o servis por substituto, o qual é em dano do meu fisco e por ende eu mando-vos que de aqui em diante entendais por vós no ofício e ponhais boa diligência nas cousas que nele ocorrerem porque se o fazeis doutra maneira, mandarei prover acerca disso como ao meu serviço cumpra. Feito em Sevilha a oito dias do mês de maio do ano de mil quinhentos. Eu o rei (rubrica) Por mandado do rei Juam Ruyz de Calcena (rubrica) (11). 

 

Com o renascimento acentua-se o individualismo frente ao coletivismo medieval e à hierarquia, individualismo que responde ao despertar da economia burguesa de livre iniciativa privada, sendo impulsado também polo livre exame dos reformadores.  Este defende como eixo cardinal que a compreensão da Sagrada Escritura por parte dum ser humano bem disposto não precisa de nenhuma mediação, no necessário para a salvação. O autêntico crente pode interpretá-la fielmente sem necessidade de contar com a tradição nem com o magistério da Igreja. O que late no fundo desta questão é o controlo das consciências que a Igreja católica não está disposta a perder, porque a sua supervivência depende, em grade parte, dela. Isto provocou que proliferassem as traduções das bíblias em línguas vernáculas para acercar a palavra de Deus à cidadania.

 

O V Concílio de Latrão, que faz o 18 concílio ecumênico da Igreja ocidental, do ano 1515, estabelece uma férrea censura de todas as publicações em todo o âmbito da sua competência dirigida a ter um controlo total das consciências, pois estende-se a toda classe de livros sem exceção. “Nos, portanto, determinamos e ordenamos que de aqui em diante, para todo tempo futuro, ninguém se atreva a imprimir ou ter impresso algum livro ou outro escrito de qualquer classe em Roma ou em qualquer outras cidades e dioceses sem que o livro ou escrito tenha sido rigorosamente examinado, em Roma polo nosso vicário e o mestre do sacro palácio, noutras cidades e dioceses polo bispo ou alguma outra pessoa conhecedora da impressão de livros e escritos desta classe e que foi delegada para este cometido polo bispo em questão, e também polo inquisidor de heresia da cidade ou diocese onde a citada impressão tenha lugar, e a menos que o livro ou escrito tenha sido aprovado por uma ordem judicial assinada pola sua própria mão, que tem que ser dada, sob pena de excomunhão, livremente e sem demora. Além disso, para que os livros impressos sejam confiscados e publicamente queimados, o pagamento de um cento de ducados à fábrica da basílica do príncipe dos apóstolos em Roma, sem esperança de auxílio, e suspensão por todo um ano da possibilidade de interessar-se da impressão, e será imposta a qualquer que atue doutro modo a sentença de excomunhão. Finalmente, se a contumácia do ofensor aumenta, que seja castigado com todas as sanções da lei, polo bispo ou vicário, de igual modo para que outros não tenham incentivo de intentar seguir o seu exemplo (12).. Esta normativa vai servir de referência para o futuro. 

 

Os reformadores ou protestantes impulsaram a leitura e tradução da Bíblia e o mesmo Lutero traduziu a Bíblia ao alemão

 

Enquanto os reformadores ou protestantes impulsaram a leitura e tradução da Bíblia e o mesmo Lutero traduziu a Bíblia ao alemão, a Igreja católica responde com uma forte reafirmação e dogmatização das suas teses e de condena de todo o que representa o movimento reformador. Esta reafirmação estendeu-se também à proscrição da leitura e tradução da Bíblia, que vai ser assumida polo magno concílio integrista de Trento (1545-1563), que impõe como única versão autêntica a Vulgata de São Jerome (13), o qual significa que, como esta versão está em latim, todas as traduções em línguas vernáculas são despossuídas de valor, como interpretou Pio VII, e, para contra-arrestar a doutrina do livre exame de Lutero, que democratiza a leitura e interpretação da Bíblia, decretou em 1546 que ninguém ouse interpretar a Sagrada Escritura, em matérias de fé e costumes “conforme ao sentir próprio, contra o sentido que susteve e sustém a santa mãe Igreja, a quem atinge julgar do verdadeiro sentido e interpretação das Santas Escrituras, ou também contra o unânime sentir dos Padres (14).

 

Portanto, os únicos que podem saber realmente o que di a Bíblia som os hierarcas de turno, e os demais devem limitar-se a recolher e repetir o que eles dizem. Tampouco se pode interpretar contra o sentir unânime dos Santos Padres, se bem cumpre qualificar este preceito de improcedente porque tal sentir unânime não existe. O objetivo da igreja católica é controlar a sua divulgação e monopolizar a sua interpretação, fazendo dependentes e menores de idade a todos os fiéis cristãos.   

 

Notas: (1). That pestilent and most wretched John Wycliffe; (2).-Bible reading by the laity; (3).-Peltier, L'Abé, Dictionaire del conciles, tom. 2, Ateliers catholiques du petit Montrour, Paris, 1847, Concilio de Oxford, T. 2, p. 910; (4).-Archbishop Thomas Arundel's Constitutions against the Lollards; (5). The Forbidden Bible - Frontline Felowship; (6). Concilio de Constanza, sesión de 4 de maio de 1415; (7). De Azcona, Tarsicio, "Isabel La Católica", Sarpe, Madrid, 1986, tomo II; pp 7-57; (8) Martínez Díez, Gonzalo, "Bulario de la Inquisición española (hasta la muerte de Fernando el Católico), Madrid. Complutense, 1998, p. 77; (9) Dominique, Pierre, "La Inquisition", Luis de Caralt, Barcelona, 1973, p. 281; (10). Green Toby, "La inquisición. El Reino del Miedo', Ediciones BSA, 2008, p. 36; (11) Cédula real del rey Fernando El Católico. 1500 AHN, sec Inquisición, lib 242, fol 197 v  (Cruz) El Rey; (12). The fitth lateran council 1512-1547; (13). Denzinger, 785; (14) Denzinger, 786.

 

A primeira parte deste artigo podes vela aquí.

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