Opinión

Democracia para os nossos dias (V)

É mui freqüente ouvir aos dirigentes espanhóis identificar a democracia com o estado de direito ou com o império da lei.

Democracia e estado de direito

É mui freqüente ouvir aos dirigentes espanhóis identificar a democracia com o estado de direito ou com o império da lei. Dizia Rajoy na clausura da convenção do PPC o 25/01/2014: “A essência da democracia é o respeito á Lei, ou se o preferis, o propósito de não reconhecer outra autoridade por cima dos cidadãos que a da lei. A essência da democracia é que todo -incluídas as votações-, e todos -incluídos os parlamentos- têm que ater-se ás normas. Ser democrata implica aceitar essa obediência voluntária a uma lei que foi feita entre todos, aprovada por todos e que a ninguém se lhe impôs á força”. Estas declarações do dirigente popular, foram reduplicadas com outras semelhantes por parte do líder do PSOE, Pérez Rubalcava, na sua intervenção no Pleno do Congresso dos deputados sobre a tomada em consideração de proposições de Lei do Parlamento de Catalunya, de delegação na Generalitat da competência para autorizar, convocar e celebrar um referendo sobre o futuro político de Catalunya, o 8/04/2014: “E, efetivamente   essa é a essência da democracia. Esse é o primeiro princípio democrático. Cumprir as leis. Leis que sabemos perfeitamente nesta Câmara que se podem cambiar. Faltaria mais. Mas o seu cumprimento para qualquer democrata é inexorável e iniludível”. Igualmente, no mesmo Pleno, a ex-líder de UPyD, Rosa Diez sentenciou: “A democracia não é só votar. É fundamentalmente respeitar as leis, as normas que nos demos todos juntos. E se não se faz, não há democracia”. O que têm em comum os três políticos citados é o de ser espanholistas até as «cachas», por utilizar uma auto-intitulação de Ortega e Gasset, e, evidentemente, para negar um direito humano coletivo, que é o direito dos povos a decidir o seu futuro em paz e em liberdade. 

"É fundamentalmente respeitar as leis, as normas que nos demos todos juntos"

Quando um escuta estas afirmações, e ademais em foros solenes, não pode por menos de ter a impressão de que no país no que se realizam passa algo raro, porque que um Chefe de Governo e dous dirigentes Chefes de Partido afirmem isto sem que sejam acurralados pola crítica, não pode por menos de deixar em parte da cidadania consciente, e especialmente nos afetados, um pouso de consternação e de raiva, por considerar que os cidadãos merecem que se façam análises mais ponderadas e mais fundamentadas. Entende-se que os políticos citados têm assessores a eito, polo menos muitos cobram por isso, que o informam de qualquer anomalia e que os aconselham para não introduzir grosarias no discurso. Por outra parte, os cidadãos vêem-se obrigados a pagar grandes somas de dinheiro a fundações partidárias, que deveriam servir para algo mais que para semear ideologias xenófobas e discriminatórias na sociedade. Tais manifestações indicam duas cousas: a primeira é que na Espanha tal como eles a entendem não tem cabida os nacionalistas periféricos, e somente é válida para os espanholistas. A segunda é que a qualidade da democracia espanhola é muito deficiente. 

Mas, deixando-nos já de lado estas valorações, analisemos ponderadamente a questão. Segundo Elias Díaz, o direito é um “sistema ou conjunto de normas reguladoras dalguns comportamentos humanos numa determinada sociedade”. Os comportamentos que se regulam são os que os legisladores dum país consideram que têm relevância para o funcionamento da sociedade, e/ou para a proteção dos interesses de grupo dos afetados pola norma. Um Estado de Direito, rule of law, é aquele no que a lei é o princípio básico da governança dum país, e opor-se-ia aos que estão governados polas decisões arbitrárias dos oficiais governantes individuais, e implica que todos os cidadãos, incluídos os legisladores, estão submetidos á lei. Neste sentido, não se pode dizer que uma ditadura personalista, uma autocracia ou monarquia absoluta, sejam estados de direito. Porém, si se pode dizer que uma democracia popular como a que existiu na URSS, era um estado de direito e, não obstante, não se pode qualificar de democracia, polo menos segundo os standards ocidentais. O estado de direito recebe o nome de nomocracia.

Mas, uma carência do império da lei pode dar-se tanto nas ditaduras como nas democracias, e nós sempre podemos perguntar-nos com sentido se um determinado estado de direito é democrático ou não, e isto já nos indica que uma cousa é a democracia e outra o estado de direito, porque sendo iguais não teria sentido a pergunta, como não a tem que perguntemos se um solteiro é um home não casado. As leis sinalam as condutas obrigadas ou autorizadas, e revistem caráter obrigatório, que é apoiado por um sistema coercitivo que castiga as condutas ilegais. De ai que careçam de sentido afirmações como as de Mariano Rajoy de que a lei a “ninguém se lhe impôs á força”. O direito, igual que a ética e as regras de trato social (normas de cortesias, urbanidade, ...) Mas diferencia-se destas em que a lei está apoiada polo sistema coativo do Estado, enquanto que uma regra como vestir de etiqueta para assistir a uma boda não está apoiada por nenhum sistema de repressão. 

"Si se pode dizer que uma democracia popular como a que existiu na URSS, era um estado de direito e, não obstante, não se pode qualificar de democracia"

Nalguns momentos considerou-se que a lei era expressão da razão, da justiça, do bem da soberania, ... mas nos nossos dias o normal é considerá-la como expressão da vontade da maioria parlamentar, que não coincide em absoluto com a maioria dos votantes e muito menos com a maioria da população, com todas as vantagens e inconvenientes que isto representa. Carece de sentido afirmar que uma lei como a da eleição por maioria absoluta do Presidente de RTVE ou a lei de segurança cidadã ou lei mordaça, promovem o bem comum, quando só promove o interesse governativo de procurar o controle e manipulação da informação em benefício próprio e/ou para evitar protestas da cidadania para com a política hostil que se pôs em marcha. Carece de sentido o que disse Rajoy e Rosa Díez de que a lei está feita por todos ou que nola demos todos juntos, porque seria o colmo que fizéramos nós leis para prejudicar-nos e para beneficiar os interesses políticos de Rajoy.  

Todos os políticos que querem consubstanciar democracia e estado de direito reconhecem, não pode ser menos, que a lei se pode cambiar e instam os dirigentes dos povos distintos do espanhol a que promovam o câmbio, cientes de que oferecem uma via a nenhures, um modo seguro de esbarrar contra a sua arrogância dos que fazem tais oferecimentos, porque, por definição, um povo minoritário nunca pode alterar uma norma se se lhe exige que se sujeite ás condições estipuladas polos grupos majoritários, que são os únicos que podem reunir os votos parlamentares mínimos necessários para fazê-lo. Creio que é uma falta total de decência e de honestidade fazer tais proposições, porque atentam gravemente contra a dignidade do grupo minoritário. Isto só indica que são separadores que fazem que a convivência seja inviável porque a única via que se te oferece á a submissão total ao outro para fazer e desfazer segundo o seu bel prazer, inclusive nos assuntos nos que um se sente concernido.

A direita espanhola sempre foi defensora do centralismo puro e duro e sempre foi a reboque inclusive para estabelecer o sistema autonômico, e uma vez instalado, sempre pugnou para limitá-lo e cerceá-lo, junto com o PSOE. Os socialistas derivam a sua ideologia do jacobinismo centralista francês, mas tiveram uma história muito mais aberturista de cara aos direitos das nações periféricas: Catalunya, Euskadi e Galiza. No seu programa político aprovado no mês de julho de 1918, estabeleciam que: “O Partido Socialista Obreiro Espanhol considera necessário para realizar a sua aspiração obter as seguintes medidas políticas e econômicas: Confederação republicana das nacionalidades ibéricas, reconhecidas a medida que vaiam demonstrando indubitavelmente um desenvolvimento suficiente, e sempre sobre a base de que a sua liberdade não entranhe para os seus cidadãos míngua alguma dos seus direitos individuais já estabelecidos em Espanha e de aqueles que são patrimônio de todo povo civilizado”. Este programa esteve vigente polo menos até o ano 1950.

No programa aprovado em Suresnes no ano 1974, na resolução sobre nacionalidades e regiões, dizia-se que “a solução definitiva do problema das nacionalidades e regiões que integram o Estado espanhol parte indefetivelmente do problema do pleno reconhecimento do direito de autodeterminação das mesmas, que comporta a faculdade de que cada nacionalidade e região poda determinar livremente as relações que vai manter com o resto dos povos que integram o Estado espanhol”. No Congresso do PSOE celebrado o ano 1976, aprovou-se que “o Partido Socialista propugnará o exercício livre do direito de autodeterminação pola totalidade das nacionalidades e regionalidades que comporão em pé de igualdade o Estado federal que preconizamos. ... A constituição garantirá o direito de autodeterminação”. Fundamentava-o mantendo que “a análise histórica diz-nos que na atual conjuntura a luta pola libertação das nacionalidades ... não é oposta, senão complementária com o internacionalismo da classe trabalhadora”. Quem o diria! Os cadeirões e a congratulação com o établissement borbônico militar fazem autênticos milagres, e agora ai os temos intentando converter-nos a todos os demais ao seu novo dogma. 

Nos últimos tempos surgiram dous novos partidos que nuclearam todo o seu discurso na idealização do passado da Espanha centralista e, conseqüentemente, no anti-nacionalismo periférico mais visceral e no desprezo e conculcação dos seus direitos como povos. Esse passado fracassado de Espanha foi idealizado como a nova Ítaca e o objeto de desejo amoroso tanto de UPyD como de Ciudadanos. Como dissemos num artigo anterior, o Sr. Rivera apresenta-se como um novo Lerroux, que proclama, ao igual que o antigo líder radical catalão: «Vamos continuar a história de Espanha», transmutada, na sua mente, numa história de êxito que se viria torcer polo raquítico sistema autonômico separatista concedido por obra e graça do Estado espanhol.   

"O Senhor Rajoy sustem que ser democrata implica aceitar a obediência voluntária á lei"

O Senhor Rajoy sustem que ser democrata implica aceitar a obediência voluntária á lei, e o Sr. Rubalcava declarou que o cumprimento da lei para qualquer democrata é inexorável e iniludível, quiçá deveriam acrescentar que também é necessário para a nossa eterna salvação, e assim já nos solucionavam os problemas terrestres e os celestiais. Mas eu sempre defendi, no meu ensino, seguindo programas estabelecidos polo PSOE-PP que desobedecer a lei não só é moralmente legítimo a vezes, senão que pode ser obrigatório em consciência. É evidente que é uma condição necessária para que a sociedade funcione, seja num estado democrático, tradicional ou absolutista, que a gente cumpre a lei, pois, em caso contrário, a convivência far-se-ia impossível, mas também é estritamente necessário que a lei seja justa, que os cidadãos vejam que reúne os requisitos mínimos para procurar a sua adesão. Não se trata de desobedecer todas as leis, que é o que pode dar lugar a uma situação de caos e anarquia, senão as leis que a cidadania considera manifestamente injustas. Quando se estabelecem leis que conculcam os direitos humanos, quer individuais quer coletivos, ou no caso das leis anteriormente citadas: lei mordaça e lei de nomeação do presidente de RTVE, a LOMCE, só com os votos do partido do Governo, e a manifesta oposição cidadã, a gente deve ver se se justifica a sua desobediência, ou se simplesmente é melhor obedecê-la, ainda que seja a contragosto,  simplesmente por obrigação prudencial, ou seja, para evitar males maiores.
 

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