Opinión

Democracia para os nossos dias (III). Democracia e representação

No dia de hoje, o modelo de democracia vigorante é a representativa, e não a direta, imperante em várias cidades gregas, principalmente Atenas

No dia de hoje, o modelo de democracia vigorante é a representativa, e não a direta, imperante em várias cidades gregas, principalmente Atenas, na época clássica, que praticamente desapareceu da cena política, apesar de ser, teoricamente, a mais apropriada para um momento em que rege a soberania popular, a soberania dos povos, entendendo por povo o conjunto dos cidadãos duma comunidade dada, e não a soberania nacional, a soberania duma enteléquia abstrata ou ser imaginário, somente existente na imaginação. Segundo Rousseau, a democracia direta é a única legítima, porque, como a lei é expressão da vontade geral, no poder legislativo o povo não pode ser representado. “A soberania não pode ser representada, pola mesma razão pola que não pode ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade geral não se representa; é a mesma ou é outra; não há termo médio. Os deputados do povo não são nem podem ser os seus representantes, não são mais que os seus mandatários; não podem concluir nada definitivamente. Toda lei não ratificada polo povo em pessoa é nulo; não é uma lei. O povo inglês crê ser livre, e engana-se muito: não o é senão durante a eleição dos membros do parlamento; desde o momento em que estes são elegidos, o povo já é escravo, não é nada” (O Contrato Social, liv. 3, 15). A vontade geral não se identifica com a vontade de todos, senão com o bem e o interesse comum que prevalece sobre o bem dos particulares. “Há muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral: esta atende somente ao interesse comum, a outra mira ao interesse privado, e não é mais que uma soma de vontades particulares” (Ibid. I2, 3). Eu não acredito no conceito idealista da vontade geral, independentemente e á margem das vontades particulares, dos interesses e necessidades dos indivíduos reais e concretos, e considero que a ética deve ter como finalidade ocupar-se destas realidades concretas e não de entidades abstratas e irreais. Também me parece idealista e irreal propugnar a existência dum bem comum, á margem da satisfação das necessidades e interesses dos indivíduos concretos e reais, que ninguém foi capaz de definir com precisão, e que foi uma expressão utilizada para justificar as maiores repressões a atrocidades. Tomás de Aquino afirmava que a lei tende ao bem comum, mais isto não foi óbice para que condenasse com a pena de morte a apostasia e justificasse a escravatura como de direito natural enquanto á sua utilidade. Os repressores da Inquisição estavam fomentando o bem comum quando castigavam aos que dissentiam ideologicamente, porque assim se procura a salvação eterna das suas almas. Tão-pouco acredito em que a soberania não pode ser representada, ainda que si considero que não pode ser alienada, porque é um direito fundamental dos povos. 

Sim considero que a atuação do povo em pessoa é a mais autêntica e deve ter a preferência sempre que seja possível sobre as atuações por representação. Um dos requisitos incluso da eficácia em qualquer gestão é que se aplique o princípio de subsidiaridade que exige que qualquer assunto deve ser resolvido polos agentes ou pola autoridade mais próximos ao problema, e assim, legislar para a agricultura galega é muito distinto que fazê-lo para a andaluza ou valenciana. Quem melhor conhecem os problemas e necessidades são os que estão em contato com eles e não políticos ou técnicos forâneos, polo menos se acreditamos na igual capacidade dos indivíduos que integram os diversos povos, e não em redentores ou supervalores alheios, que tanto racional como cientificamente não se sustém. Isto implica que as decisões nas comunidades nas próximas aos próprios cidadãos, sempre que não excedam do âmbito comunitário.  

Os povos pequenos, como pode ser o galego, podem ter uma qualidade de democracia mais perfeita porque os representantes estão mais em contato com os representados e com os problemas a que se vem enfrentados

As razões da implantação da democracia representativa obedece, por uma parte, á magnitude dos povos, que não têm comparação com as muito limitadas cidades gregas, mas também a que fornece um marco mais adequado e mais influenciável para o domínio do sistema oligárquico, hoje implantado nos países ocidentais denominados democráticos, e para o seu anseio de desapoderamento da cidadania, que converte a democracia atual muitas vezes, como no Estado espanhol, numa oligarquia com votos. Uma maneira de evitá-lo é aperfeiçoar a noção de representação, e, pola outra, complementar a democracia representativa, hoje quase exclusiva, com a democracia direta mediante a convocatória de referendos. Os povos pequenos, como pode ser o galego, podem ter uma qualidade de democracia mais perfeita porque os representantes estão mais em contato com os representados e com os problemas a que se vem enfrentados. Montesquieu definia “o governo republicano como aquele em que o povo inteiro, ou parte do povo, tem o poder soberano” Do espírito das leis, liv. 2, 1). Segundo Montesquieu, “pertence á natureza da república não possuir mais que um pequeno território, pois sem esta condição não pode subsistir. ... Numa República extensa, o bem comum sacrifica-se ante mil considerações, subordina-se a exceções, depende de acidentes. Numa república pequena, o bem público apalpa-se, conhece-se melhor, está mais perto de cada cidadão, os abusos estão menos protegidos e, por tanto, menos protegidos” (Ibid. Liv. 8, 16). Rousseau considerava que a democracia convém aos países pequenos e pobres, (Ibid. Liv. 3, 8), mas considero que a história não lhe deu a razão. Nos nossos dias, um país como Luxemburgo, é mui pequeno e mui rico.  

Dizer um povo pequeno não significa um povo fechado em si mesmo. Devemos ter presente também que vivemos numa sociedade global, que fomenta as intercomunicações e intercâmbios de todas classes entre os países e os cidadãos, e a necessidade de apertura á comunidade mundial, se bem isto nunca deve ser motivo de que se diluam as diferenças, as personalidades dos povos diferenciados e os seus sinais de identidade no coletivo global, criando um home informe, cosmopolita, desenraizado sem vida e sem alma, uma cultura de «aeroporto», homogeneizadora dos modos de sentir, pensar, consumir, etc. Um povo somente pode contribuir criativamente ao acervo cultural comum da humanidade desde o seu feito diferencial.    

Mandado representativo e mandado imperativo

O mandado representativo entende-se como um apoderamento político que se caracteriza por ser livre, tanto por parte de quem o dá como do seu destinatário; geral, enquanto que não se precisa o seu alcanço; e não revogável, ou seja, que os que o outorgam não podem deixar sem efeito. Contrapõe-se ao mandado imperativo, que é um poder outorgado a outro com a finalidade de desenvolver alguma atividade ou gestão, definida, enquanto ao tempo e ao contido, no contrato de apoderamento, sem admitir nenhuma modificação por parte do destinatário, e revogável em qualquer momento. Quando Rousseau diz que os deputados não podem ser mais que os seus comissários ou mandatários, está apelando ao mandado imperativo, que seria o único válido. 

A maioria das constituições ocidentais tem proibido o mandado imperativo, e isso indica que os representantes elegidos podem atuar segundo o seu próprio critério e sem ter que respeitar os compromissos adquiridos ou aceitados verbal e/ou programaticamente com os seus eleitores, e sem que estes, por mais burlados que se sintam, podam fazer outra cousa que penalizá-lo não renovando-lhe o mandado nas vindoiras eleições. Um caso bem eloqüente é o do presidente Rajoy que inclusive se ufanava de que não cumpria o seu programa mas si o seu dever, como se a apelação á sua hipotética consciência individual o libertasse de qualquer responsabilidade política. A proibição do mandado imperativo remonta á Revolução Francesa, que na Constituição do ano 1791, estatuiu que “Os representantes eleitos polos departamentos não serão representantes de nenhum departamento em particular, senão da Nação inteira e não se lhes poderá conferir nenhum mandado” (art. 7, Secc. III, Cap. I, Título III). Na Constituição de Cádiz desaparece o mandado imperativo, próprio da sociedade estamental, e estipula-se no seu artigo 27 que as “Cortes são a reunião de todos os Deputados que representam a Nação, nomeados polos cidadãos”, e este mandado representativo renovou-se nas constituições sucessivas, incluída a de 1978. Na Constituição da II República diz-se que “os deputados uma vez elegidos, representam á nação” (Art. 53). Cumpre ter presente que uma cousa é afirmar que os deputados representam a nação ou o povo espanhol, como se diz na CE de 1978, e outra os condicionantes dessa representação, que, de por si, não exclui certa submissão ás demandas cidadãs assumidas polos candidatos, senão somente das que sejam incompatíveis com a representação do todo, enquanto que a proibição expressa do mandado imperativo si que a elimina.

As razões para a defesa do mandado representativo apelam a que a assembléia é o espaço de confrontação de idéias e de construções de consensos, que seria inviável se os representantes tivessem que respeitar compromissos previamente adquiridos sem poder modificá-los. Não sei se noutros países o Parlamento cumpre esta função, mas é claro que no Estado espanhol não é assim. Os consensos não se forjam nos plenos senão nos cenáculos ou escritórios e nos plenos unicamente se expõem as racionalizações do acordado que se querem transmitir á cidadania. Isso poderia aplicar-se ao Parlamento da Segunda República, na que alguns oradores como Ortega chegaram a cambiar o voto dos deputados para evitar uma República federal.

A proibição do mandado imperativo permitiu-lhe aos deputados assaltar o céu da soberania popular e erigir-se de fato, durante toda a legislatura, nos autênticos soberanos

A proibição do mandado imperativo permitiu-lhe aos deputados assaltar o céu da soberania popular e erigir-se de fato, durante toda a legislatura, nos autênticos soberanos, destronando desta arte a soberania popular, que reduz a selecionar, normalmente cada quatro anos, quem vão ser de fato os novos soberanos. Cria-se assim um corpo intermédio, usurpador da soberania, entre a cidadania e o Estado. As conseqüências não se deixam esperar, e traduzem-se na expressão duma cidadania irada que grita: não nos representam! Não nos representam!, ante a surpresa dos próprios afetados, mas essa é a realidade pura e simples, que se ratifica com os freqüentes casos de transfuguismo político, nunca devidos a autênticos câmbios de critério a nível ideológico, senão a puros interesses crematísticos dos afetados. Estamos assistindo a esta altura, a um segundo tamaiazo, por parte do deputado provincial lucense Martínez, que, protegido pola proibição de mandado imperativo, se enraivece caprichosamente porque outro partido distinto não o apoiou para presidente da Deputação por estar imputado judicialmente, como se tiver direito algum a ocupar esse carrego político, e deixando a toda a cidadania provincial numa situação de beco sem saída durante toda a legislatura em que mantém a alíquota parte usurpada de soberania. 

Por outra parte, a CE, art. 1, estabelece que a “soberania nacional reside no povo espanhol do que emanam os poderes do Estado”, e todos os deputados que se consideram que não pertencem ao povo espanhol, senão ao vasco, catalão ou galego, vem-se obrigados a representar a soberania dum povo que não é o seu e que nega a sua própria realidade nacional no mesmo ato constitucional. Este é outro câmbio que procederia fazer para deixar claro que a soberania reside nos povos nação do Estado espanhol.

Por outra parte, os estados atuais são estados de partidos, considerados pola mesma CE como “instrumento fundamental para a participação política” (art. 6), que são os que apresentam os candidatos, pagam as campanhas e decidem a ordem nas listas, o qual implica que considerem que existe uma certa dependência dos deputados eleitos a respeito do partido, que não deveria ver-se chantageado irracionalmente por parte deles, e os mesmos eleitores podem ver-se burlados por decisões deste tipo. Por outra parte, a proibição do mandado imperativo é dificilmente compatível com o estabelecido na Lei Orgânica 6/2002, de 27/06/2002, de Partidos Políticos que estabelece que é “obrigação dos afiliados a de aceitar e cumprir os acordos validamente adotados polos órgãos do partido”, e esse dever de aceitação implica um mandado imperativo do partido sobre o afiliado eleito. O mandado imperativo véu conservando-se, dum modo rotineiro nas constituições, salvo na da II República, como um resto arcaico, mas considero que, para proteger a soberania popular, haveria que proceder á sua supressão e a sua substituições por mecanismos, como pode ser a sujeição a um programa comum, a realizar de modo obrigatório, salvo que se aduzam e o povo aprove câmbios excepcionais, que garantam que exista também uma política global de país e não só um cúmulo de interesses particulares. 

Na Galiza, Vicente Risco defendia em 1930 que “se admitimos, como é necessário admitir dentro do sistema liberal, que o povo é o depositário da soberania, a relação que há entre ele e os deputados é de mandante a mandatário. Isto não tem volta. Então temos que, sendo todo mandado essencialmente revogável, pois o mandado não pode ter mais duração que o tempo que lhe atribua o mandante, todo mandado eleitoral deveria ser limitado. Por que o que se admite em Direito civil não de há admitir em Direito político” (O problema político de Galiza, VII).   

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