Opinión

Democracia para os nossos dias (II) Democracia e direitos humanos

No artigo anterior, delineamos algumas das características da democracia


No artigo anterior, delineamos algumas das características da democracia, entre elas a participação entre pessoas iguais com objeto de  cumprir o princípio de que «cada pessoa conta como um e somente como um», ou «uma pessoa um voto»; fizemos observar que a democracia não se pode identificar sem mais com o governo da maioria, como pôs de relevo Alexis de Tocqueville, quando diz que a maioria dum povo está submetida á decisão da sociedade universal e obrigada a cumprir a sua lei que é a justiça, e nunca pode abusar dos direitos das minorias, e, além disso, que se dá uma potencial tensão entre maioria e minorias. Destacamos também que a democracia surge no período liberal que se caracteriza pola defesa dos direitos humanos individuais, e do lema revolucionário francês: liberdade, igualdade, e fraternidade. Não é casual que surjam a esta altura as primeiras declarações de direitos humanos, como a Carta de Direitos de Filadélfia, de 1787, e a Declaração dos direitos do home e do cidadão, da Revolução Francesa de 1789.

A democracia em Grécia tinha como traços distintivos: ser direta, porque os indivíduos participavam em pessoa na tomada de decisões; e total, no sentido de que não existiam limitações ao que a assembléia ou eclésia pudesse decidir. Isto deu lugar a que um cidadão eminente como Sócrates fosse condenado a morte por uma acusação que se referia a liberdade de pensamento e de culto.  A democracia moderna surgiu praticamente no século XX, embandeirada por países como Austrália e Nova Zelanda, no seio, segundo o Bóbbio, duma concepção individualista da sociedade, contraposta á organicista da Idade Antiga e Média, á que contribuíram o contractualismo dos séculos XVII e XVIII; o nascimento da economia política, para quem o sujeito é o home individualmente considerado, o homo oeconomicus e não o politikón zóon (o animal político) da tradição clássica greco-medieval; e o utilitarismo de Bentham e Mill, que partem de estados individuais como o prazer e a dor, e definem o bem comum como a felicidade do maior número possível de indivíduos. 

Ortega e Gasset, que nunca foi um democrata muito convencido, sublinhou a antinomia entre liberalismo, que implica direitos individuais, que limitam o poder do povo; e democracia, governo do povo, da totalidade dos cidadãos; e pode-se ser, dizia, mui liberal e nada democrata ou mui democrata e nada liberal. Considero que Ortega se bem tem razão ao sinalar esta tensão entre ambas, mas isto, por uma parte, não é um inconveniente senão uma vantagem, e, pola outra, é evidente que não se pode ser democrata e nada liberal na acepção que a democracia tem nos nossos dias. Recolher o legado do liberalismo não é uma objeção contra a democracia moderna senão que é uma garantia que esta oferece aos indivíduos, que seria complementada com as garantias que nos dão os direitos coletivos.    

Na história da filosofia política, desde o mesmo Platão, estabeleceu-se a contraposição entre as pessoas individuais e as coletivas, quer dizer os povos. Assim, se uma pessoa tem liberdade para decidir, também os povos têm direito de autodeterminação; se uma pessoa pode expressar-se na língua dos seus antepassados, um povo deve ter poder para conservar essa língua e poder transmiti-la ás novas gerações; se um indivíduo pode ter iniciativa para criar centros de ensino, um povo deve poder também estabelecer o sistema de ensino que melhor lhe acomode. Por tanto, os direitos humanos podem ser individuais e coletivos. Entre estes, os mais importantes são os de autodeterminação, autogoverno, direito ao controle dos seus próprios recursos, direito a legislar sobre a própria língua, cultura, etc.

Existe na prática uma criminalização do independentismo a nível sócio-político, como podemos observar com o que está a passar a respeito do problema catalão

As liberdades proclamadas nas primeiras declarações de direitos humanos são as civis- políticas e econômicas individuais, ou direitos da primeira geração, que tinham por objeto limitar o papel do poder político frente ao indivíduo, no sentido de estabelecer um reduto privado individual que esse poder político tem que respeitar e no que não pode intrometer-se. A democracia deixa de ser total, e ela mesma se auto-limita nas suas atribuições. Isto faria inviável que se repetissem inumeráveis casos históricos de pessoas condenadas por delitos de opinião, consciência, culto, etc. A Constituição Espanhola garante, como não podia ser menos, estes direitos individuais, mas podemos observar que não sempre conseqüentemente, pois, embora se diz que todo se pode defender sempre que se faça polas vias pacíficas, existe na prática uma criminalização do independentismo a nível sócio-político, como podemos observar com o que está a passar a respeito do problema catalão. Quando uma pessoa pensa algo que a legislação comunitária considera como lícito, deve também poder realizar o que pensa, e isto vale tanto para uma pessoa individual como para uma pessoa coletiva, ou seja, um povo. Mas essa mesma CE ignora totalmente os direitos coletivos, salvo os referidos ao povo espanhol.

Os direitos humanos da primeira geração careciam de virtualidade prática porque é impossível exercê-los se se carece dos meios econômicos necessários, e, por isso, foram completados com os direitos da segunda geração, que são os direitos socioeconômicos e culturais, que visam fundamentalmente que o poder político poda intervir na economia, frente ao laissez faire do liberalismo puro, para poder redistribuir a riqueza,  e que todos podam desfrutar dum mínimo vital com objeto de conseguir uma certa liberdade e igualdade reais e não meramente formais. Estes direitos também podem ser individuais, como o direito á propriedade privada, ao trabalho, ao descanso, ás vacações periódicas retribuídas, etc.; e grupais, como o direito a dispor dos recursos existentes no próprio território, direito a desenvolver uma economia auto-centrada, direito a legislar sobre as formas de organização social, etc. No Estado espanhol, a regressão que padecemos nas duas últimas legislaturas políticas foi mui notória. Milhões de pessoas perderam o seu posto de trabalho, apesar de que a Constituição consagra o direito ao trabalho; milhares de pessoas foram despejadas das suas vivendas por uma crise que elas não provocaram, apesar de que a CE e a Declaração Universal de Direitos Humanos estatuem que todos têm direito á vivenda; milhões de pessoas viram congelados quando não diminuídos os seus salários, convertidos muitas vezes em salários de miséria, apesar de que a Declaração Universal de Direitos Humanos estabelece que toda pessoa “tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória que lhe assegure, a si como á sua família, uma existência conforme á dignidade humana”; milhões de trabalhadores perderam os seus direitos laborais, etc.; mentes que medraram notoriamente os benefícios empresariais, as isenções fiscais ás empresas, incrementando as desigualdades socioeconômicas até imites insuportáveis. Quando todo isto acontecia, a cidadania observou estupefata que vivemos num magma de corrupção política generalizado que esvaziou os recursos do país em benefício duns poucos. Com o incremento das igualdades socioeconômicas, voou polo ar o lema «cada pessoa um voto», pois há pessoas que podem determinar a opinião pública em benefício das oligarquias, como está a passar com o ascenso de Ciudadanos.   

A democracia é o império das maiorias, respeitando os direitos humanos, tanto individuais como coletivos; tanto dos indivíduos isolados como dos povos

Na década dos setenta do século XX, surgem os direitos da terceira geração, que visam limitar o papel do poder político e dos indivíduos frente á coletividade, entre os quais destacam o direito ao meio ambiente, para procurar proteger a saúde das pessoas e a utilização prudente, racional e sustentável dos recursos naturais; e o direito á paz, a viver num ambiente livre de guerras. A este respeito, observamos um retrocesso importante na implantação das energias “limpas” com a paralisação da energia eólica e a portagem ao sol, para desincentivar o auto-consumo energético em benefício das multinacionais. Ao mesmo tempo, constatamos um incremento da atividade bélica em muitos países, e do terrorismo internacional, que motiva o deslocamento de milhões de pessoas dos seus lares e a morte de milhares de pessoas inocentes.      

Os da segunda e terceira geração permitem-nos entrar na democracia pos-liberal, uma democracia na que não conte só o indivíduo senão que o poder político democrático deve ser quem imponha as regras de jogo, em benefício da coletividade, das pessoas individuais ou coletivas, ou seja, os povos.  

Quando se trata de caracterizar a democracia podem-se fixar diversos traços como distintivos, que costumam depender das pessoas que os estabelecem. Alguns reduzem a democracia ao império das maiorias, mas isto pode justificar a tirania dos mais sobre os menos. Em vista disso, outros acrescentar que a democracia é o império das maiorias, sempre com respeito das minorias, mas isto introduz um conceito impreciso de minoria. Eu considero que seria melhor afirmar que a democracia é o império das maiorias, respeitando os direitos humanos, tanto individuais como coletivos; tanto dos indivíduos isolados como dos povos. É necessário aceitar que as formações que obtém maioria, só ou em coligação, devem poder governar, mas isso não pode ser em base a massacrar os direitos dos que estão afetados polas medidas de governo, sejam indivíduos ou povos, que em caso de discordar gravemente com as medidas impostas e não achar vias de solução ás suas aspirações, muitas vezes polos seu caráter de minoria duradoira, devem poder decidir o seu futuro livremente.  

Comentarios