Opinión

Democracia e divisão de poderes

A divisão ou separação de poderes é a ordenação e distribuição das funções do Estado


A divisão ou separação de poderes é a ordenação e distribuição das funções do Estado pola qual se atribui a órgãos ou organismos distintos a titularidade de cada uma delas. 

A divisão de poderes é uma doutrina e uma prática relativamente recente, pois não existia nem na antigüidade greco-romana nem na Idade Média. Em Grécia, as distintas funções do Estado podiam ser desempenhadas pola mesma pessoa, inclusive nas cidades-estado democráticas. A democracia não tinha limites, pois os cidadãos varões maiores de idade podiam decidir em pessoa sobre todo. A primeira conclusão que podemos extrair é que a democracia, pola menos a direta, pode existir sem divisão de poderes.

O mesmo podemos dizer do império romano no que o poder do príncipe era absoluto. Como exemplo, imos citar um texto do imperador Constantino I, do ano 325: “Se alguém de qualquer lugar, ordem ou dignidade, está convencido de poder provar de maneira veraz e evidente contra qualquer dos juízes, condes, amigos ou palatinos, que não atuou íntegra e justamente, que aceda intrépido e seguro, que me interpele: Escutarei todo, examinarei todo e se se tiver provado, vingar-me-ei eu mesmo. Que fale, que fale seguro e bem consciente; se se tiver provado, como disse, vingar-me-ei daquele que, até este tempo me induziu a erro com simulada integridade, mas a aquele que tiver denunciado e comprovado acrescentá-lo-ei com dignidades e bens” (Código de Teodósio, 9.1.4). Em Roma, o imperador era a máxima autoridade religiosa que ostentava o título de Sumo Pontífice, política e militar. Como chefe político, desempenhava as funções legislativas, executivas e judiciais.

Nas sociedades democráticas está aceito que a soberania reside no povo, mas ainda não está aceito em muitas delas que reside em cada um dos povos e onde há vários povos há várias soberanias

Vai ser o liberal John Locke (1632-1704) o primeiro que propõe uma divisão de poderes num momento de formulação do pensamento liberal e de ascenso da burguesia á cimeira do poder económico e político, em substituição da decadente nobreza latifundiária. Locke formula a sua doutrina da divisão de poderes no capítulo 12 do Ensaio segundo sobre o Governo civil, no que afirma que existem três poderes: a) legislativo, que "tem um direito a indicar como deve ser empregada a força da comunidade para preservar a força do Estado para preservar a comunidade e os seus membros” (§ 143); b) executivo, que "mira pola execução das leis que se fizeram, e permanecem em vigor” (§ 144); e c) federativo ou natural, que tem como objetivo que "sejam geridas polo público as controvérsias que se produzem entre qualquer home da sociedade com aqueles que estão fora dela, e que uma injúria dada a um membro do corpo compromete o todo na sua reparação” (§ 145), por tanto, o que hoje se entende por relações exteriores e a declaração da guerra ou a concertação da paz. O poder supremo, enquanto subsiste o governo, pois em caso contrário recairia na Comunidade, é o legislativo e todos os demais são delegados e devem estar submetidos ao mesmo. Com todo, "fica-lhe sempre ao povo o poder supremo de apartar ou cambiar os legisladores, se considera que atuam duma maneira contrária á missão que se lhes confiou" (§ 149), voltando neste caso o poder a quem lho entregou. Locke estava totalmente oposto ao absolutismo porque considerava que “o poder absoluto arbitrário, ou o governo sem leis fixas estabelecidas, não podem nenhum deles harmonizar-se com o fim da sociedade e do governo” (§ 137), que é preservar as vidas, liberdades e bens dos homes, e segurar a paz e a tranqüilidade mediante normas estabelecidas de direito e propriedade. Pareceria, por conseguinte, lógico que defendesse a separação de poderes para evitar o absolutismo, mas somente fundamenta a separação do legislativo a respeito do executivo no fato de que se fossem as mesmas pessoas as que legislam e executam as leis, “daria lugar a que se eximissem da obediência as leis que eles fazem, e ajustassem a lei, na sua redação e execução, ao seu próprio proveito privado, e ter por isto interesse distinto do resto da comunidade, contrário ao fim da sociedade e do governo”.  (§ 143). As divisões posteriores omitiram o poder federativo, integrando-o no executivo, e estabelecerão como terceiro poder o judicial, que, para Locke ficava integrado no executivo.

Foi o barão de Montesquieu (1689-1755) quem propôs a divisão de poderes que foi unanimemente aceitada pola posteridade: legislativo, executivo e judicial. Em todo Estado há três poderes: legislativo, executivo e judicial. A sua separação constitui a garantia da liberdade. "Todo estaria perdido se o mesmo home, o mesmo corpo de pessoas principais, dos nobres ou do povo, exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os delitos ou as diferenças entre particulares" (Do espírito das leis, liv. 11, 6). Para ele não haveria liberdade se o poder legislativo está unido ao executivo na mesma pessoa, “porque se pode temer que o monarca ou o Senado promulguem leis tirânicas para fazê-las cumprir tiranicamente”. Tão-pouco haveria  liberdade se o poder judicial não está separado do legislativo, porque “o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrária”; nem haveria liberdade se o legislativo não está separado do executivo, “porque o juiz teria a força dum opressor”. Para este autor, a separação de poderes, justifica-se, pois, em aras da liberdade, que não consiste em fazer o que um queira senão que “é o direito de fazer todo o que as leis permitem, de jeito que se um cidadão pudesse fazer o que as leis proíbem, já não haveria liberdade, pois os demais teriam igualmente esta faculdade" (Ibid. 11, 2).  Com todo, para ele, a liberdade não se dá somente na república ou democracia, senão também na monarquia e na aristocracia; nem a democracia tal como ele a entende se identifica com a democracia atual. Para Montesquieu, quando “o povo inteiro tem o poder soberano, estamos numa democracia”. (Ibid., liv. 2,2), que tem como sistema próprio de eleição o sorteio, enquanto que a designação por eleição corresponderia á aristocracia. (Ibid., 2, 2).

Alfonso Guerra declarou em 1985, após a reforma da Lei do Poder Judicial, que “hoje enterramos a Montesquieu”

Nas sociedades democráticas está aceito que a soberania reside no povo, mas ainda não está aceito em muitas delas que reside em cada um dos povos e onde há vários povos há várias soberanias. Os diferentes poderes do Estado são como delegados dessa soberania popular, e o soberano, quer dizer, o povo, tem interesse e direito a ordenar estes poderes para obter um funcionamento harmônico das instituições públicas em serviço dos seus interesses, e a divisão de poderes, de procedência e natureza liberal, converteu-se num instrumento básico para conseguir este objetivo. Não existia na democracia direta ateniense, porque o soberano atuava em pessoa, mas quando se atua por meio de representantes, faz-se imprescindível. A separação de poderes é, junto com os direitos humanos, outro contributo importante do liberalismo na conformação da democracia representativa atual, que visam ambos a limitar o poder do Estado sobre o indivíduo. A separação de poderes é um instrumento necessário do soberano, ou seja, do povo, para evitar a concentração excessiva do poder em qualquer dos órgãos do Estado, estabelecendo um sistema de controles e contrapesos entre os três poderes limitativos do poder entre eles, com objeto de garantir o correto funcionamento das instituições e evitar a corrupção política. Podemos afirmar que a qualidade democrática dum país se pode deduzir da qualidade da sua divisão de poderes, e, ao invés, que, a qualidade da sua divisão de poderes, se pode deduzir da sua qualidade democrática. Também podemos aplicar isto mesmo ao caso da corrupção, pois também, a partir dum oceano de corrupção política, como a que existe no Estado espanhol, se pode inferir que a divisão de poderes não funciona, que falham os controles, devido a que os que ostentam o poder estabeleceram uma separação de poderes que atua em benefício próprio, ou, noutras palavras, que se criou um sistema para favorecer as práticas extrativas da oligarquia política partidária e da oligarquia econômica. 

O que está passando nos nossos dias, nomeadamente a nível do Estado espanhol, é que os representantes do soberanos, ou seja do povo, des-empoderaram a este da sua soberania e erigiram-se eles mesmos nos autênticos soberanos de fato, criando uma espécie de oligarquia partidária que é quem gera todo o invento de costas á cidadania, e o povo converteu-se de fato no legitimador dessa soberania mediante eleições periódicas. Patentiza-se isto claramente com a reforma constitucional do PP e PSOE para antepor os interesses da oligarquia econômica sobre os seus próprios, e sem dar-lhe audiência ao despossuído. Agora se aprestam a assinar, incluso parece que antes de lê-los, os tratados internacionais ultra-secretos, como uma demonstração da sua fé inquebrantável na transparência, TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership), e o TISA (Trade in Services Agreement), para consolidar o seu domínio oligárquico a nível global e liquidar qualquer empoderamento e poder de decissão da cidadania. 

Uma pessoa pode pessoalmente controlar o seu partido e os três poderes do Estado, e, como no caso do PP, mesmo um dirigente que foi elegido a dedo polo seu antecessor

Alfonso Guerra declarou em 1985, após a reforma da Lei do Poder Judicial, que “hoje enterramos a Montesquieu”, porque, pretextando que o Conselho Geral do Poder Judicial era um órgão corporativista, assinalaram a nomeação dos seus membros ao Parlamento, convertendo o Poder Judicial num apêndice do poder legislativo, que finaria com a sua politização e a perda da sua independência. O resultado foi que a retificação dum mal engendrou outro muito maior. O PP promete que despolitizaria a justiça, mas no fundo, não está interessado em fazê-lo porque uma justiça domesticada lhe rende grandes serviços políticos aos que ostentam o poder no Estado, entre outros, manter humilhados a todos os demais povos que não sejam o espanhol, como está a passar com o problema catalão. Este despropósito judicial acrescenta-se com a perda de qualquer independência do ministério fiscal, que, teoricamente atua de acordo aos princípios de unidade de ação, hierarquia e imparcialidade, mas que na prática essa hierarquização, ao ter na sua cimeira um fiscal geral elegido polo poder político de turno, tem como conseqüência que a sua imparcialidade se veja reiteradamente questionada pola sua atuação prática. Além disso, ao ser os partidos espanholistas os que controlam o poder legislativo e o executivo, a eleição dos membros do Conselho Geral do Poder Judicial e do Tribunal Constitucional vai recair sempre em vogais favoráveis á defesa e promoção dos interesses do povo espanhol, negando na prática os demais povos que convivem no Estado.

Mas, o problema é ainda muito mais grave se temos em conta que também o poder legislativo não é mais que um apêndice do poder executivo, e este um apêndice do chefe do partido ganhador das eleições que foi quem propõe, em última instância, os candidatos ao Congresso e ao Senado. Isto significa que uma pessoa pode pessoalmente controlar o seu partido e os três poderes do Estado, e, como no caso do PP, mesmo um dirigente que foi elegido a dedo polo seu antecessor. Não existem na Constituição Espanhola contrapesos de nenhuma classe á atuação do poder executivo, porque o legislativo é um órgão totalmente submetido ao poder executivo e sem poder de iniciativa autêntica, que se limita a aprovar o que lhe interessa em cada momento ao executivo, que é quem tem toda a iniciativa legislativa. Em EEUU o Presidente pode vetar uma lei aprovada polo Congresso e este tem o poder de não aprovar leis presidenciais, e também de alterar a composição e jurisdição dos tribunais federais. Isto não significa que este sistema de controles estadunidense seja adequado para o Estado espanhol, entre outras cousas, porque o seu sistema político é presidencial e o espanhol é parlamentar, mas si que é necessário que exista um sistema de controles e de independência dos distintos poderes, e, para isto, há que modificar o sistema de eleição do poder legislativo e do poder judicial.  

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