Opinión

Kissinger ressuscitado (I)

Dizia Henry Kissinger em 1970 —apenas umhas semanas antes da vitória de Allende en Chile— que nom temos por que aceitar que um país se torne socialista só pola irresponsabilidade do seu povo. Eram os dias grises da Guerra Fria, quando todo eram espions, documentos carimbados com Top Secret e páginas inteiras de palavras ocultas por trás de umha fita negra. Aquela guerra terminou oficialmente com a queda do muro de Berlim —e com Boris Ieltsin acavalo dum tanque a bombardear a Duma de Moscova, com centenares de funcionários no interior. A vitória parecia tam certa que os liberais, com Fukuyama à frente, até proclamárom o fim da História. O capitalismo impunha-se por fim ao socialismo: a luita de classes desaparecia e começava umha hegemonia que ninguém iria discutir em cem anos, diziam. Mesmo cunharam um nome: o Século Americano. Caída a cortina de ferro, era o momento de remover os falcons do Pentágono e trocá-los por novos intelectuais como Joseph Nye, guru do soft power. Mas, é claro, a História nom terminou nos cascalhos da Duma, e o Século Americano nom durou nem duas décadas. 

A vitória parecia tam certa que os liberais, com Fukuyama à frente, até proclamárom o fim da História. O capitalismo impunha-se por fim ao socialismo

Os processos progressistas da América Latina; a sobrevivência, contra todo pronóstico, do Eixo de Resistência; os avanços imparáveis da China, que aconteciam sem que o grande público parecesse prestar muita atençom, e até a inesperada recuperaçom da Rússia depois de os experts a terem saqueado durante umha década, apareceram como novas ameaças a umha visom unipolar do mundo que só podia sustentar-se à força de moldar e disciplinar mercados, povos e continentes inteiros, e que nom podia admitir caminhos divergentes. Quando o lento basculamento euroasiático —mais asiático do que euro— se tornou patente e o nervosismo se disparou, a reaçom do grande capital transnacional, livre do velho contrapeso soviético, já só podia ser violenta. Foi por aí que assistimos ao desmembramento da Jugoslávia por capítulos ou às guerras do Golfo que se estenderam por toda a regiom.

Mas as cousas nom demorárom a mudar. A arrogáncia dos países do centro do sistema e a violência sistemática que exerceram contra qualquer dissidência gerárom novos contrapesos. A invasom do Iraque em 2003, com a orgulhosa participaçom do estado espanhol, marcou o fim dumha época silenciosa em que os protestos mal conseguiam fazer-se ouvir além do seu círculo imediato e o anti-imperialismo era incapaz de levantar a cabeça. Naquele conflito, milhons de pessoas saírom às ruas para opor-se. Por todo o mundo. Foi o «nom» mais massivo e global da história, e o grande capital tirou as suas conclusons: para continuar a impor a sua agenda particular, era necessário quebrar a ideia de que existisse sequer umha agenda que impor. 

Mas as cousas nom demorárom a mudar. A arrogáncia dos países do centro do sistema e a violência sistemática que exerceram contra qualquer dissidência gerárom novos contrapesos.

As guerras «por valores, em vez de por interesses estrangeiros», como Bill Clinton caracterizara a empreitada imperialista contra a Jugoslávia na década anterior, converteram-se no novo padrom. Ademais, desde 2000, os think tanks ultraliberais vinham popularizando a ideia de um direito de intervençom estrangeira baseado na ideia de que a comunidade internacional —a que importa— devia proteger os povos contra os seus governos quando estes fossem incapazes ou «perigosos». Nom fai falta muita imaginaçom para ver nessa nova «responsabilidade de proteger» a maneira educada de dizer o que Kissinger tinha já dito trinta anos antes, mas os contrapesos responsáveis de evidenciá-lo e denunciá-lo —os grandes meios globais— simplesmente nom o fam, porque também fam parte do capital monopolista, e porque também tenhem agendas a ocultar. 

Venezuela, Síria, Bolívia, Bielorrússia, Líbano, Irám ou a própria China aparecem, nom por acaso, sob essa óptica da responsabilidade de proteger, com os seus atributos à medida do imperialismo: a) ocultar os verdadeiros interesses perseguidos; b) reservar aos países do centro do sistema a capacidade de decidirem onde intervir e onde nom; e c) converter em suspeitoso qualquer país que se negar a submeter a sua soberania, automaticamente. As implicaçons som profundas e duríssimas. Mas sobre elas haverá que continuar na próxima entrega.

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