Opinión

Floyd versus hegemonia

Duas longas semanas de protestos no coração da besta e poucas cousas parecem ficar por dizer. Tal é o poder de produção de discurso nos Estados Unidos —e sobre os Estados Unidos. George Floyd foi assassinado em 25 de Maio de 2020 e o movimento Black Lives Matter ecoou em multidão de países, repetindo que vidas negras importam em capitais de todo o mundo. Antes de Floyd, mas em menor escala, essa afirmação fora já palavra de ordem após os assassinatos de Trayvon Martin, Eric Harris, Walter Scott, Jonathan Ferrell, Samuel DuBose ou Freddie Gray. Mas alguma cousa parece ter mudado, desta vez. Este Black Lives Matter não parece extinguir-se no facto de haver mais uma vítima, e tampouco parece limitar-se ao lugar do facto. As centenas de mobilizações, os toques de recolher instaurados por toda a parte e mesmo os gestos hipócritas, mas inéditos, que temos visto aos responsáveis políticos falam de uma nova dimensão. 

Ora, há outro tema do que não se fala tanto. Com a enésima vítima negra, Minneapolis passa a alargar essa lista de cidades da que já fazem parte Baltimore ou Ferguson. Uma lista terrível na que, porém, são muitos os nomes que já conhecíamos ou que nos resultam familiares ao ouvido, mesmo dantes. E isso ainda estando a milhares de quilómetros de distância e sem serem, na realidade, lugares de relevância política ou de grande importância em populaçom. 

O que acontece é que essa familiaridade não é simétrica, como sabemos. Nem tampouco casual. É, bem pola contra, produto de uma guerra à calada que serve ao poder estado-unidense para atingir objetivos dentro e fora de casa. Uma guerra cultural que se serve de meios de comunicação sistémicos, perfeitamente alinhados e alimentados, e que explica, por exemplo, as intermináveis linhas escritas sobre um gesto de Nancy Pelosi fronte a um discurso de Trump, enquanto a maioria de nós desconhece o nome do primeiro ministro de Portugal, aqui tão perto. Trata-se duma guerra real que só por oposição às matanças e aos bombardeios é que parece mais discreta, mas que existe, e na que são investidos milhões de dólares cada ano, porque funciona. Joseph Nye (que logo iria ser assessor de política exterior de Clinton e Obama), chamou-a soft power. Uma pressão direta e brutal, que não mata nem mutila à vista, mas que dá os mesmos frutos a meio e longo prazo: a hegemonia. 

A hegemonia dos Estados Unidos tem um duplo rostro. Para fora, permite apresentar o país como o modelo a seguir. O paradigma da democracia liberal ao que tendem a maioria de nações do hemisfério norte e com o que sonham muitas outras no Sul global, queiram ou não. Para isso trabalham os tentáculos do monstro: o Banco Mundial, o FMI, a NATO e tantos e tantos acordos bilaterais do tipo NAFTA, TTIP, CETA, etc. Para dentro, a hegemonia serve para apresentar a desigualdade e a subsequente repressão como uma normalidade inquestionável, quase como uma certeza científica. E, porém, a tal certeza científica é falsa, e a tal autoridade global está longe de ser irresistível. 

Ao contrário! A hegemonia dos Estados Unidos fora leva duas décadas em crise. Mais profunda cada vez. A emergência de novas lideranças mundiais e regionais, como a Rússia, a China ou o Irão, e a resistência teimuda doutros países como Cuba, Venezuela ou Síria provam essa falta de tração e disparam todos os alarmes lá onde se apostou polo «século americano» dos apologetas do imperialismo. 

Pola sua vez, as reações ao assassinato de George Floyd parecem apontar para uma grave erosão da hegemonia doméstica. A vaga de indignação parece, por fim, ligar com outras opressões e os protestos parecem entrar numa fase de autoorganização popular, ainda incipiente, mas que dá esperanças contra a «pax americana» em casa. O que esta nova tomada de consciência venha a trazer só o tempo o dirá. Há enormes expectativas à volta, porque os interesses em jogo são também enormes. Mas não no-lo vão contar os de sempre. Os meios que forneçam informação alternativa a essa visão hegemónica terão, por fim, uma das chaves na mão. Ajudá-los a abrir a porta, também na Galiza, corresponde-nos a nós

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