Opinión

A culpa é da China

Primeiro: as medidas de combate à pandemia dividiram a maioria de países do mundo em três grupos. Por uma parte, os que seguiram o modelo da China, baseado em confinamentos maciços e paralisação de qualquer atividade económica e social não essencial para travar o contágio. Por outra, com Washington e Londres à cabeça, os que decidiram que a afectação dessas políticas aos interesses dos seus grupos dominantes é um preço alto de mais e optaram por não fazer nada, aplicando o darwinismo social cru e nu e esperando que e enfermidade varra apenas os grupos menos produtivos —idosos, sem-teito, etc. E, por fim, os que entenderam que a COVID-19 não é uma “gripezinha” qualquer, mas tampouco estão dispostos a travar a sua economia globalizada, não planificada e desorganizada, navegando entre ordens de confinamento mais ou menos geral nos tempos de lazer e a negativa a encerrar fábricas, centros de chamadas, centros comerciais, etc.

E aqui entra o segundo aspecto que já é possível ver com certa clareza: conforme passam os dias, as políticas do primeiro grupo estão a provar uma maior eficácia, deixando menos vítimas e levando, de passada, as populações dos outros países a exigirem medidas mais audazes dos seus próprios governos. E não só: também a premerem polo reforçamento dos sistemas públicos de saúde e segurança social, e a verem a planificação económica que permite todo isto com melhores olhos. E isso em países que previamente iniciaram uma enlouquecida carreira para privatizar todo o sector público, que insistiram na cessão de soberania, mesmo renunciando a ter política monetária própria, e nos que defender a economia planificada, seja qual for o nível dessa planificação, era quase motivo de ostracismo.

Por último, a sensação cada vez mais geral de que a China e os seus sócios estão a enfrentar esta crise melhor do que a Europa e a América do Norte está a fazer saltar os alarmes do grande capital e dos seus ideólogos diante dum grande basculamento de poder de Ocidente para Oriente. Este basculamento não é um fenômeno inédito, nem aparece como consequência da pandemia. Mas não por isso resulta menos problemático para umas grandes burguesias que até agora se beneficiaram largamente de ocuparem o centro de um sistema-mundo criado à medida, e que vem a emergência da China e da Rússia, a resistência da América Latina aos ataques imperialistas ou os movimentos do mundo árabe e persa em direção a Pequim e Moscovo como um signo de mudança dos tempos. Uma mudança que significa menos poder e menos lucro, que não desejam e não podem permitir. E por isso —terceiro aspecto visível— os países que agora mesmo pior tratam a crise sanitária e menos estão a fazer para evitar que se estenda ao mundo do trabalho, onde já está a haver milhões de despedimentos e um aumento disparado das cifras de pobreza relativa, são os que mais investem em apresentar o outro como uma opção liberticida, distópica, culpável de toda esta desfeita.

A ofensiva ideológica e propagandística, que também já vinha de antes, radicaliza-se agora e ocupa todos os espaços disponíveis: dos grandes meios de comunicação, que publicam cada dia novas peças sobre a perversão de um sistema chinês absolutamente desconhecido para a maioria, até as acusações diretas de que a China, a Rússia, Cuba ou a Venezuela estão a procurar aumentar a sua influência política com cada avião de médicos e material que enviam para a UE. Que algumas dessas declarações tenham surgido das próprias instituições europeias enquanto os seus sócios principais fecham as portas à emissão de coronabonos a bem da ortodoxia neoliberal não deixa de provar a hipótese da guerra ideológica e propagandística. Uma guerra menos visível que a do COVID-19, mas que também se está a combater.

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