Opinión

2018, Ano Marx (XI) / Ética, política e ideologia

Publicamos a seguir a undécima entrega de Mauricio Castro sobre a obra de Karl Marx (1818-1883), no ano do seu bicentenario. Son doce achegas, unha por cada un dos meses do ano.

Deparamo-nos na ética com umha dupla característica que nos leva a incluir a sua abordagem nesta série de textos divulgativos sobre a obra de Karl Marx.

De umha parte, a sua importáncia na compreensom e transformaçom social, umha vez que constitui um momento da práxis em que o ser humano forma o seu próprio juízo sobre a sua conduta, com as claras conexons que como tal estabelece com a dimensom política e ideológica das sociedades de classes.

De outra parte, a falta de abordagem sistemática da questom por parte de Marx, que levou os primeiros revisionistas, primeiro Bernstein e depois Kautsky, a arranjar umha ética feitinha e sistemática proveniente da tradiçom anterior ao próprio Marx, incorporando assi à tradiçom marxista a ética kantiana.

Do anterior, concluímos a necessidade de retomar a questom de se há ou nom umha ética implícita no pensamento originário marxista, diferente das historicamente anteriores. Há quem reduza Marx a crítico da economia política burguesa, mas parece difícil esquecer o papel da emancipaçom humana na sua militáncia e produçom teórica. Vários autores já assumírom a tarefa de desenvolver os pressupostos éticos presentes a partir dos Manuscritos económico-filosóficos de 1844 e da Ideologia alemá (1846), mas também e já antes n’A Questom Judaica (1843), n’A Sagrada Família (1845), na Miséria da Filosofia (1847) e principalmente n’O Capital (1867), incluindo os diversos rascunhos e versons (Grundrisse, Teorias da Mais-Valia, etc).

Foi o caso, entre outros, do húngaro Gyorgy Lukács e do andaluz-mexicano Adolfo Sánchez Vázquez, entre outros destacados teóricos do marxismo do século XX, que aprofundárom no estudo da obra de Marx para tentar sistematizar umha ética marxista.

Comecemos por lembrar que as éticas “tradicionais” davam prioridade a valores ideais, prévios à atividade humana e pretensamente desvinculados de qualquer historicidade, estabelecendo assi normas de obrigado cumprimento como via para a virtude. Eram estáticas, idealistas, transcendentes e naturais. Aristóteles e as funçons atribuídas ao amo e ao senhor na ordem do universo; Santo Tomás ou Santo Agostinho e as verdades reveladas por Deus, na Bíblia, por cima de qualquer raciocínio terrenal... para só referir alguns autores “clássicos” de diferentes etapas.

O Renascimento abre o jogo para a teoria política moderna, com Maquiavel a separar já no século XVI ética e política, desnaturalizando-as e trazendo-as para a imanência dos interesses privados. É a irrupçom do individualismo burguês, com a racionalidade, a mobilidade social, a separaçom entre a vida pública e a privada, todos eles resultantes do próprio desenvolvimento histórico, de base económica (compradores e vendedores de mercadorias no mercado livre). Todo o qual tem um carácter progressivo na longa etapa de ascenso da nova classe burguesa ao poder e até meados do século XIX, em que se produz o seu recuo ideológico, perante a ameaça da nova classe proletária, como já comentámos em textos anteriores desta mesma série divulgativa.

Descartes, Locke, Hobbes, no século XVII; Rousseau e Kant no século XVIII; e Hegel a cavalo entre esse e o seguinte, representam diferentes marcos do desenvolvimento histórico da ideologia burguesa como força progressiva, tentando compatibilizar a pregaçom da liberdade com a prioridade dos interesses privados que caracteriza o capitalismo. Umha contradiçom que se mantém até hoje e que, nas suas várias tendências, coincide em desconectar a ética do mundo material, por vias essencialistas, especulativas, formalistas… em definitivo, idealistas, sem conseguir ultrapassar aquela contradiçom fundante.

Como superaçom das éticas idealistas anteriores, a ética materialista presente na obra de Karl Marx parte de umha definiçom dos valores como objetivos e reais, embora contendo um momento subjetivo e ideal, como corresponde a umha ontologia materialista e dialética. É o desenvolvimento social histórico que determina esses valores, que por sua vez se constituem em determinaçons do agir humano. Daí a sua crítica à especulaçom filosófica e o empenho em criticar materialmente a economia política burguesa, como base ontológica da autoconstruçom humana.

A origem da ética encontramo-la na prática humana originária enquanto espécie, constituindo-a como ser social. O trabalho, como materializaçom ou objetivaçom de um valor de uso, de umha necessidade que deve ser satisfeita, parte do valor e do dever-ser como pressupostos. O valor é a finalidade e o dever-ser é a conduta acorde com o êxito da finalidade, o que cristaliza as condutas adequadas como deveres-ser sociais e, em simultáneo, cria novas possibilidades e transforma o próprio género humano no seu andamento histórico.

A origem da ética encontramo-la na prática humana originária enquanto espécie, constituindo-a como ser social

 

É nesse caminho que se constituem, em cada época, os valores e deveres-ser próprios às condiçons objetivas de sociabilidade, nunca por cima nem à margem delas. Nom fai falta insistir em que a divisom social do trabalho e a propriedade privada provocam fortes transformaçons numha ética entendida como Marx fai, ganhando perfis classistas, históricos e concretos. Dito em linguagem filosófica: imanente.

Já no capitalismo, o trabalho irá além da sua condiçom de simples meio de satisfaçom de necessidades, para assumir a condiçom de fim para a apropriaçom de riqueza por umha minoria. Daí surge umha nova ética, cujos valores estám submetidos ao valor que se valoriza através da extraçom de mais-valia da força de trabalho.

Também a ideologia parte de pressupostos materiais e históricos concretos. No caso de Marx, ela ganha duas aceçons. É a primeira a de falsa consciência com que a classe dominante explica o mundo de modo superficial ou fenoménico, em favor dos seus interesses de classe (presente na Ideologia Alemá) e, em obras posteriores, assumirá contornos mais complexos como forma de consciência da própria condiçom da classe trabalhadora no seu processo histórico de autoemancipaçom. Será esta a aceçom desenvolvida por Lenine, sob o nome de ideologia proletária.

Quanto à política, surgida necessariamente com a sociedade de classes, constitui a atividade social em que se disputa o poder do Estado, recorrendo as diversas classes a princípios e explicaçons ideológicas para tentar manter a ordem de cousas dominante ou para tentar transformá-las, superando-as.

A influência da ética burguesa, principalmente a formalista kantiana, tem hoje grande peso nom só nas forças sociais interessadas na manutençom do atual estado de cousas, mas também na esquerda devedora da II Internacional e da falência do próprio movimento revolucionário que no seu dia constituiu a III Internacional. É essa umha ética fundada na separaçom entre os interesses antagónicos das classes e os princípios éticos dominantes. E é dessa falência, agravada polo fim do chamado “campo socialista”, que surgem programas políticos assentes em exigências idealistas, individualistas e voluntaristas na hora de defender umha suposta ética alternativa à dominante, recaindo numha confusom ética-política-ideologia que parece querer levar-nos de volta a tempos pré-Maquiavel.

Vemo-lo nom só nas proclamas políticas baseadas em “códigos éticos” surgidos das cabeças pensantes da “nova esquerda”, mas também na reduçom do político ao plano pessoal e da transformaçom coletiva à soma de vontades guiadas por imperativos categóricos. Quem nom escuitou ou mesmo repetiu proclamas do tipo: “nom fagas aos outros o que nom queres que che fagam a ti”; “a tua liberdade acaba onde começa a do teu vizinho”; “os pequenos gestos e compromissos quotidianos de cada um de nós mudará o mundo”, “muda tu primeiro para depois mudares o mundo”...

A influência da ética burguesa tem hoje grande peso na esquerda devedora da II Internacional e da falência do próprio movimento revolucionário que no seu dia constituiu a III Internacional

 

Recorre-se a tais princípios, próprios de um ativismo liberal, para defender o planeta, pregando o compromisso de cada habitante individual com a reciclagem ou com o uso da bicicleta; para tentar impor um novo sistema de relacionamento económico, baseado no compromisso particular ou de pequenos grupos de consumo e comércio justo; ou para combater a corrupçom política, reclamando estritos controlos sobre a atividade “dos nossos políticos”; e assi por diante.

Atençom: nom estamos a atribuir a Marx qualquer desprezo polo compromisso pessoal e individual com valores éticos rumados à construçom de umha sociedade diferente. Sendo ele, antes de mais, um militante da causa que defende, nega qualquer unilateralidade e reconhece a relaçom dialética entre a materialidade e o pensamento, entre o coletivo e o indíviduo. Porém, o pólo dominante está no primeiro elemento de cada par, tornando possíveis alguns deveres-ser e impossíveis outros, em funçom das próprias condiçons materiais, na orientaçom da ética enquanto finalidade. É sobretodo mudando o mundo que o ser humano muda a sua própria condiçom genérica humana, e nom ao contrário.

É já a partir da referida Ideologia Alemá que Marx e Engels descartam contundentemente qualquer moralismo que, em nome de umha ética abstrata, condicione a política, que para eles deve ser baseada na prioridade da transformaçom material das condiçons de existentes, única via possível para o surgimento de umha nova ética:

...os comunistas nom propugnam egoísmo contra a abnegaçom, nem abnegaçom contra egoísmo, e nom aceitam teoricamente esta oposiçom nem na forma doméstica, nem naquela ideológica e extravagante, mas, antes, demonstram a sua origem material, com a qual ela desaparece por si só.”

E acrescentam:

Os comunistas nom pregam nengumha moral genérica (...) Eles nom proponhem aos homens os imperativos morais: amai-vos uns aos outros, nom sejades egoístas, etc; ao contrário, eles sabem perfeitamente que, em determinadas situaçons, tanto o egoísmo quanto a abnegaçom som formas necessárias para a afirmaçom dos indivíduos”.

Concluindo, podemos afirmar que a chamada “ética do bem comum”, com ampla circulaçom social nos nossos dias, nom passa da versom ideológica de aqueles princípios abstratos que já Marx atribui ao citoyen, esbarrando com o interesse privado do bourgeois, em referência à ruptura entre ambos planos do ser social no capitalismo (veja-se A Questom Judaica).

A política, como disputa do poder entre as classes no ámbito da sociedade civil, impom a sua ética para além das boas palavras, servindo a ideologia, no caso da classe dominante, para mascarar e confundir umha e outra. A compreensom da articulaçom entre as três categorias (ética, ideologia e política) irá ajudar-nos a evitar ficarmos reduzidos e atrapalhados em princípios moralizantes na hora de agirmos social e politicamente, enquanto classe. Para tal, torna imprescindível assumirmos a prioridade ontológica da açom política para a transformaçom da realidade em funçom das possibilidades materiais existentes, servindo-nos da ideologia que, no caso da classe trabalhadora, deverá ser verdadeira ou científica nas suas pretensons. Será do avanço verificável do processo de transformaçom que surgirá umha nova ética, adequada às novas finalidades colocadas pola classe trabalhadora e, através dela, orientada para o género humano.

Apesar da brevidade, julgo ter mostrado como Marx deixou, também no campo da ética, um contributo cuja vigência é plena e que nos convida a avançar no estudo teórico com perspectiva materialista e dialética, partindo da prioridade das condiçons da realidade objetiva, como parte de umha praxis social transformadora.

Nota: podes reler aquí a entrega anterior desta serie de artigos.

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