Opinión

Porque espertar não sempre significa estar vivo

“Qualquer argumentação filosófica que não tenha como preocupação principal abordar terapeuticamente o sofrimento humano é inútil. “ Epicuro [1] 

Quotidianamente habitamos na pantomima absurda que se acopla ao nosso PC e que nos subjuga com métodos alienadores.

Procuram-nos submissos. Anseiam implantar-nos um dispositivo que suplante o nosso livre pensamento. Querem-nos monicreques, interatuando nas lindes de realidades interativas. As sensações são transmitidas via Net, alojadas no fed de notícias, ali, avistamos esse espelho roto, intermitente, que nos mostra os sinistros com imagens sombrias. Tornamo-nos insones diaristas, invólucros e entusiásticos. Somos internautas na outra banda, implícitos nas linhas de vocábulos breves dos messengers. Vivemos imersos numa comunicação metafórica, figurada. Assentada nas diversas aplicações do teu web log: relações, intercâmbios, partilhas, interesses...

Em ocasiões, arrastam-nos a teimas repetitivas, ao ideal de opiniões únicas e intransigentes. Afundadas numa imersão tão profunda, meditativa e perseverante que pode abeirar numa obsessão. E uma sente o pensamento continuado, assíduo de ter a consciência apresada, paralisada no mesmo lugar: no cenário anexado, ligado ao sistema. Que nos acolhe com a tática enganosa, artificiosa do “marqueting experiencial” Envolve-nos no sonoro pranto que aviva as alertas. Somos seres enclaustrados nas sombras e o desvio não é fácil, não sempre existem linhas secundárias e é duro às vezes, sentir a inutilidade das palavras.

Vivemos imersos numa comunicação metafórica, figurada. Assentada nas diversas aplicações do teu web log: relações, intercâmbios, partilhas, interesses...

 

No íris, alcançamos com raiva as visualizações de tragédias que acontecem de cotio e desgraçadamente sabemos que a valoração não é equânime, que há vítimas de 1ª de 2ª...

Inquestionavelmente existe uma avaliação gerada, adequada para a classificação. Por esse motivo, eu gosto de mergulhar-me no periodicismo e erigir aqueles relatos de acontecimentos dos que nenhum dos meios telemáticos massivos se faz eco. São os ninguém, aqueles que devido à sua procedência, religião, ideologia, género, idade, extrato social... são deliberadamente esquecidos. Não interessam! Assim que uma propícia alteração transitória e seletiva da memória faz possível a inserção dum chip, no que guardar os dados que querem, os que lhes importam, e destruir o resto. O humano, às vezes é um ser involuto que só percebe a dor quando lhe é próxima, quando está dentro, de seu. Esse ente que permanece invólucro no hábito do individualismo, na indiferença e a prepotência, sem capacidade de empatia. Que persiste mergulhado no preconceito: o mundo é um redondo, enorme preconceito!.

Portanto para mim, escrever é fazer reflexões, acochar no coração a tristeza pelas vítimas do mundo. Mas também é entender que um ataque a um mercado em Nigéria e a civis em Síria nunca há ter a cobertura jornalística que um drama das mesmas dimensões e tristeza, nos erradamente denominados países desenvolvidos. (mas parece-me conveniente aclarar que qualquer ataque ou massacre é totalmente censurável, que não se entendam mal os meus argumentos. Pois sei que a compreensão às vezes também é um sentido que pode não funcionar corretamente, ou voltear-se para onde quiser o interlocutor).

Um ataque a um mercado em Nigéria e a civis em Síria nunca há ter a cobertura jornalística que um drama das mesmas dimensões e tristeza, nos erradamente denominados países desenvolvidos

 

Justamente neste momento, aproximadamente quatro milhões de refugiados sírios estão a viver uma terrível situação de desamparo. São vítimas de acordos e decisões duns criminais, que atuam desde uma suposta comunidade de direito e integração, que com uma cegueira conveniente decidem um acordo ilegal e condenam uns seres humanos a uma deportação forçosa, inevitável. Evidentemente, a situação extrema duma pessoa de condição humilde não vai ser examinada com a mesma igualdade que o mínimo problema dum indivíduo privilegiado. Portanto, com toda seguridade, se aplicará uma resolução de iniquidade.

E não ignoramos que o desalento é uma constante que flutua a través das janelas fechadas da inumanidade, cambaleiam nos píxeis dos horríveis fotogramas: de morte, de abandono, de horror...!

Crianças, mulheres, homens... são capturados e reclusos em campos de concentração, lugares criados especialmente para imolar vidas.

Considero ademais que é motivo de comoção o facto de que outra menina síria se “renda” diante duma câmara ao confundi-la com um arma. Esta reação é muito significativa, manifesta a situação de medo e desesperação à que estão expostas as pessoas, que foram confinadas por uma quadrilha de delinquentes com licença para matar.

Um ataque a um mercado em Nigéria e a civis em Síria nunca há ter a cobertura jornalística que um drama das mesmas dimensões e tristeza, nos erradamente denominados países desenvolvidos

 

Certamente não todas as vítimas nem os mortos são iguais. Há falecidos que serão soterrados na soledade da terra, totalmente afastados dos ecos que transmitam o seu ADN, ninguém terá conhecimento das suas histórias, nem as suas amarguras e por eles, ninguém chorará exceto as suas famílias.

Os meios de informação têm uma criva muito específica para valorar quais temas devem ter relevância e quais não. E este é um comportamento que resulta chocante, ofensivo para os que temos que destapar a realidade de muitos casos por outras vias.

O facto de viver num lugar do planeta determinado e a etnia à que pertenças vai ser fundamental, pois predeterminará o teu status no mundo. Um mundo só pensado para os clãs que defendem e proclamam leis que lhes favoreça só a eles. Gostam em classificar, atribuir privilégios de classes e sentenciar que atuações e posicionamentos são os adequados. Primam as apreciações dos valedores arbitrários, dos narcisos que se olham na complacência absoluta deles mesmos.

Quando observas que a razão está vinculada à jerarquia mais elevada das classes sociais, então não fica muito que dizer. Num inevitável embelezamento mastigas a ira e assistes confusa à exposição tão trilhada da definição da igualdade, que não existe! Só na alterada perceção da fantasia. Prosseguimos padecendo uma constante luta de classes [2] . Nada é diferente, e esta realidade aporta uma sensação de frustração nos nossos ombros que nos custa aturar. Ademais cobre-nos com uma estimulação patológica, originando-nos uma oportuna sinestesia coletiva, capaz de dominar-nos:

 

«A história da sociedade até aos nossos dias é a história da luta de classes» «As ideias dominantes numa época nunca passaram das ideias da classe dominante.» Karl Marx [3]

 

«O livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos". Friedrich Engels [4] 

Mas também é certo que em ocasiões uma educação deficiente, com uns conceitos equivocados, fazem-nos aceitar certas condutas sem fazer uma análise prévia de porque atuámos assim. Quiçá as tradições há que dissemina-las pelo miúdo, pois não tudo que é costume é bom. Hoje o pensamento de Simone de Beauvoir segue a ser um suporte fundamental para o feminismo. Não devemos afastar-nos da luta, pois não é uma ficção o grave retrocesso que estamos a viver. Este é um momento tremendamente duro: 

 

«O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos» «Querer ser livre é também querer livres os outros.»

«Que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre.» Simone de Beauvoir [5]

Ainda que seja um hábito difícil de eliminar da nossa vida cotiam, as diferenças sociais estão tão instauradas na sociedade, que até algumas atitudes nos semelham normais. Vivemos com a certeza de pertença a um determinado status social, e isso faz que nos enfrentemos à vida com os arquétipos que nos foram introduzidos desde a infância, com a única intenção de alienar-nos. Portanto, não é fácil abrir a porta da condição de inferioridade à que nos apresaram. Essa é uma tarefa árdua e de muitos anos de convicção e luta.

Atravessar os limites, erguer-te em rebelião é realmente muito necessário, mas para que haja uma continuidade e a mudança se troque realidade, tem que haver um seguimento crescente e continuo de gente que procure a liberdade.

Ser mulher acrescenta esta dificuldade, pois à problemática da diferença de classe se lhe une a dos micro machismos, que seguem estando aí, complicando em grande medida a nossa incursão imprescindível ao mundo sócio institucional. Porém é preciso desterrar já todas as particularidades que nos marginam, fomentadas pelo patriarcado e que ainda hoje seguem vigentes, principalmente quando é preciso falar de nós.

Ser mulher acrescenta esta dificuldade, pois à problemática da diferença de classe se lhe une a dos micro machismos

 

Por esta razão e outras, a via virtual de comunicação adquire uma vital importância, principalmente, para os estratos sociais mais desprotegidos e esquecidos. Este sistema, se o sabes utilizar, tem muitos benefícios e possibilidades.

São redes onde ti mesma podes fazer possível a visibilidade daqueles casos cruentos, que te afetem dalgum jeito, direta ou indiretamente. Em vista disso, de não contar com este órgão de difusão: fazer ver, mostrar o verdadeiro alcance do problema desde a perspetiva real da vítima, em primeira pessoa, seria muito complicado, quase impossível. Palestrar e analisar certos temas para a sua posterior resolução seria impensável. Sem embargo, deste jeito, não é necessário passar pela criva interessada do jornalismo convencional, que se baseia unicamente em o “politicamente correto” , o que vende, ou não vende...

Este espaço é muito válido, para participar não é preciso contar com um máster, só é necessário ter algo que dizer. É uma boa forma de desvelar certas injustiças, que pelos meios tradicionais não conseguem tornar efetivas as suas denúncias. Não obstante, também há gente que usam estas plataformas para outros interesses, algo que não penso censurar, exceto se fazem dano a terceiros com os seus atos. E para isso, se for necessário, concordo que seria ótimo que se estabeleça a regulação de leis reais e contundentes, para salvaguardar a dignidade das pessoas.

Ainda que estes meios têm muitos benefícios, não esqueçamos que residimos num território ambíguo, no que a maioria da gente não é o que aparenta. Neste área não interessa conhecer as tristezas alheias, ao contrário, gostam de viver imersos na risada coletiva. Empacotados na fictícia amizade do facebook, whatsApp, Instagram...

Assim, pois, cobre-te com a máscara de fingidora e sai à rua!. Fora do “personal computer” moram os paraísos das grandes superfícies.

É necessário entender que a tristeza é considerada enfermidade, tema tabu. Que convém não mencionar!.

Ocasionalmente, achegas-te à crença duma cultura da introspeção, pensas que é um útil recurso de defensa. Retrocedes a um tempo em que a enfermidade era um assunto de calar. Igual que o que acontecia numa casa, era segredo, silêncio. O maltrato era uma definição que se desconhecia: morria uma mulher de forma estranha e o mutismo era o estado imediato do povo. Existia a suspeita, todos sabiam, ouviram, mas ninguém falava.

A primitiva filosofia do retraimento.

Assim, este texto de Nietzsche [6] recordou-me parte do meu percorrido como viajante eventual, entre as minhas sombras. A dor absorvia-se para o interior, vivendo envolta em celofane, para não permitir que o sofrimento traspassara os valados da privacidade:

(…) “Evite-se estar doente demasiado tempo, pois os espetadores impacientam-se rapidamente pela usual obrigação de mostrar compaixão, dado que lhes custa demasiado esforço manter este estado muito tempo, e então passam imediatamente a suspeitar do nosso caráter, com o razoamento seguinte: «mereceis estar enfermos, e não temos por que seguir extenuandonos com a compaixão» 

Mas agora vivemos imersos na cultura do IN: inconexão, involução, interferência, indiferença, invisibilidade...

Os nossos dias trocam-se numa quotidianidade repleta de signos, ícones, stickers, emoticões, que servem para tudo: insultar-se, odiar-se, amar-se, abraçar-se, masturbarse... Pendurada numa conexão implícita ao teu smartphone, quando a acessibilidade do teu wi-fi o permite, ou bem, se estás num lugar solidário que che concede esse privilégio. Rolamos pelas páginas sociais e às vezes abrimos o nosso coração perigosamente ao mundo virtual. Sem pensar nas possíveis consequências que isso pode carregar.

Os nossos dias trocam-se numa quotidianidade repleta de signos, ícones, stickers, emoticões, que servem para tudo: insultar-se, odiar-se, amar-se, abraçar-se, masturbarse...

 

Quiçá desvelar demasiado de ti é um equívoco jeito na procura do antídoto para a soidade. Quiçá devamos reflexionar bem nestas questões, e dar um passo atrás no tema dos relacionamentos e de amizades, trasladar-nos a um passado não tão afastado e pensar no diálogo direto, na conversa real, efetiva. Estar face a face, diante dum café e sentir a sensação prazenteira da proximidade, do afeto. Porque se há algo que o virtual é incapaz de conseguir, e o amimar eletrizante do beijo e o cálido abraço de dois corpos nus. Mas também é preciso que a conexão direta não interfira entre ti e o teu espírito, que a procura duma proximidade com alguém, não se converta numa fugida do ti próprio, no afastamento inevitável com o teu pensamento.

Há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar, que não deixam agir, que não deixam claramente ser.

«Reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem.» Fernando Pessoa [7] Livro do Desassossego 

Nesta altura, seguimos atados, submetidos a um modo de vida que nos desagrega do nosso “eu”. E os dias seguem a ser uma sequencia inevitável do capitalismo, semelha impossível fazer uma redução a mínimos. Possuímos o mono, a dependência absurda às coisas. A acumulação de objetos, propriedades... converte-se na intenção errada de engrandecer o anseio de bens de consumo.

As necessidades acurralam-nos entre as paredes frias e inertes do predomínio, da influência económica de classes. O habitat é uma selva na que sobrevivemos, com a certeza de intervalos de desilusão que interferem no nosso dial.

Possivelmente, quando tens a convicção, a exata proximidade dos limites, confrontas com precisão o verdadeiro sistema de objetivos. Compreendes que o abatimento tem graves efeitos negativos, que te debilitam. Por isso, espertar não é suficiente. Porque espertar não sempre significa estar vivo. 

[1]. Filósofo grego. Samo, 341- 271 a. C. Fundador do Epicurismo, fundamentado na identificação do bem soberano como prazer e na teoria atomista, na qual o átomo era o elemento formador de todas as coisas.

[2]. Denominação dada por Karl Marx e Friedrich Engels para designar o confronto entre a burguesia, aos que consideravam os opressores, e o proletariado, a classe oprimida. Classes antagônicas, existentes no modo de produção capitalista. 

[3]. Filósofo, sociólogo, jornalista e revolucionário socialista.Tréveris, 5 de maio de 1818-London, 14 de março de 1883. 

[4]. Teórico revolucionário alemão. Barmen, 28 de novembro de 1820-London, 5 de agosto de 1895. Coautor de diversas obras com Marx.

[5]. Escritora, profesora e filósofa francesa. Paris, 9 de janeiro de 1908- Ibíd 14 de abril de 1986

[6]. Filólogo, filósofo, crítico cultural, poeta e compositor alemão do século XIX. Röcken, 1844 – Weimar, 1900.

 [7]. Poeta e escritor portugués. Lisboa, 13 de junho 1888- Ibídem, 30 de novembro 1935

Comentarios