Opinión

Oxalá a pobre Asunta fosse cativa!

No título desta peça, Asunta é a meninha compostelana Asunta Basterra Porto

No título desta peça, Asunta é a meninha compostelana Asunta Basterra Porto, vítima recente de um brutal homicídio, cujo conhecimento comoveu há meses a sociedade toda. Traguemos aqui à colaçom o seu nome para completarmos a exposiçom e denúncia de um tipo de uso lexical aberrante, já versado nos dous artigos anteriores da nossa lavra publicados no Sermos Galiza digital, que deriva da penosa circunstáncia de os codificadores da RAG e muitos utentes de galego com freqüência nom pensarem em galego (e si em castelhano). Assim, a esses crassos exemplos de alheaçom lexical galega, somamos nesta entrega e na seguinte mais dous, no intuito de contribuirmos para o aguçar da consciência lingüística e da perceçom lexical entre os utentes cultos da nossa língua.  

«À cativa Asunta aconteceu isto», «À cativa Asunta aconteceu aquilo». Enunciados como estes surgiam, infelizmente, sem cessar há uns meses nos canais de rádio e televisom que se exprimiam em galego. Quando eu, pola primeira vez, os ouvim, nom pudem evitar rosmar «Nom, ho! Oxalá a pobre Asunta fosse (ainda) cativa!». É claro: se a nena Asunta, na altura de os jornalistas a qualificarem de cativa, fosse realmente cativa, nom estaria morta, apenas presa, apenas privada de liberdade! Com efeito, o vocábulo galego-português cativo -a, que pode funcionar como adjetivo e como substantivo, provém do latim captivus, já se atesta por escrito na nossa língua no século XIII e significa, primária e principalmente, ‘preso, privado de liberdade, encarcerado, sob cativeiro’. Nesse sentido, trata-se de um vocábulo de certa forma culto, vinculado aos usos formais, em contraste com o seu sinónimo preso -a, de caráter mais popular. Por isso mesmo, polo seu cariz formal, a voz cativo, no seu sentido primário e próprio de ‘privado de liberdade’, será esquecida na Galiza entre os utentes de galego-português a partir do século XVI, a partir do início dos Séculos Obscuros, dado que, desde entom e durante vários séculos, o galego-português na Galiza deixa de ser escrito e de ter usos formais, e dado que, para a comunicaçom nom formal, o sinónimo preso -a se revela suficiente. Este fenómeno de degradaçom lexical, designável como erosom, afeta em galego todos os elementos lexicais privativos dos registos formais e dos usos literários e especializados que o galego-português gerara até ao século XV, e pode exemplificar-se, também, com vozes como cujo [pronome relativo], assaz [advérbio], todavia [conjunçom adversativa], cativeiro ‘qualidade do cativo’, cauda [sinónimo culto de rabo], conteúdo, cratera, portagem... Já com o decorrer dos séculos, quando o galego for reintroduzido na comunicaçom formal, recorrerá-se habitualmente ao castelhanismo *cautivo -a, forma que atua como suplente para preencher a lacuna expressiva determinada pola erosom da voz genuína cativo ‘preso’ (fenómeno que também se observa nos castelhanismos suplentes *ca(u)tiverio, *cola ‘cauda’, *cont(en)ido, *cráter, *peaxe). Entretanto, o velho significante galego-português cativo -a véu a incorporar em determinadas regions da Galiza umha série de significados derivados, como ‘ruim, de má qualidade’ e ‘criança, neno’, de modo que, nesses sentidos, e só nesses sentidos, o uso de cativo -a si pudo subtrair-se na Galiza à erosom lexical e à suplência castelhanizante, polo seu claro caráter popular.

 A voz 'cativo', no seu sentido primário e próprio de ‘privado de liberdade’, será esquecida na Galiza entre os utentes de galego-português a partir do século XVI, a partir do início dos Séculos Obscuros

Ora, na presente altura, para reintroduzirmos em plenitude o galego nos usos formais, como os jornalísticos, temos de restaurar as vozes cultas galegas erodidas na sua forma genuína e em condiçons de plena funcionalidade expressiva, o que nos aproxima das atuais variedades lusitana e brasileira e exige de nós, nalguns casos, a expurgaçom de eventuais castelhanismos suplentes e, ocasionalmente, a aplicaçom de certas medidas padronizadoras adicionais. Este é o caso de cativo ‘preso’, já que a sua restauraçom plena, funcional, requer, em primeiro lugar, da expurgaçom do respetivo castelhanismo suplente *cautivo (cousa que, felizmente, fai o atual dicionário da RAG) e, em segundo lugar, da manutençom na condiçom dialetal, a que pertence, do uso informal de cativo no sentido de ‘criança, neno, meninho’, renunciando a promover tal uso lexical a umha condiçom supradialetal que lhe nom corresponde (cousa que, infelizmente, o atual dicionário da RAG nom fai!). Isto último é indispensável, porque a restauraçom funcional de cativo no seu sentido próprio de ‘preso’ se vê fortemente empecida pola generalizaçom do uso de cativo no sentido de ‘criança’ e, em especial, pola indevida e freqüente ocorrência de cativo ‘criança’ em enunciados de caráter formal (trata-se de valores semánticos que, nos usos formais, supradialetais, se revelam mutuamente incompatíveis). Além disso, em paralelo com a conveniente nom-promoçom de cativo no sentido de ‘criança’, cumprirá, naturalmente, promover o uso de vozes coloquiais genuínas denotadoras de ‘criança’ que nom colidam com a restauraçom de cativo ‘preso’, como pequeno e, sobretodo, de harmonia com o luso-brasileiro, miúdo.

No entanto, infelizmente, aquilo que acabamos de censurar é, justamente, o que se está a verificar atualmente nos meios da comunicaçom social: estám a utilizar de modo habitual, e mesmo em enunciados de registo formal, cativo com o sentido de ‘neno, criança’, com umha freqüência muito superior à de cativo ‘preso’, de modo que —faga o amável leitor a prova!—, entre os galegos nom filólogos recetores da rádio e da televisom galegas, é geral hoje a crença de que o significado de cativo é, unicamente, ‘meninho’, com exclusom do significado próprio e culto ‘privado de liberdade’, valor para o qual esses galegos continuam a reservar o castelhanismo *cautivo! E, junto com esse fracasso da restauraçom social na Galiza da voz galego-portuguesa genuína cativo ‘preso’, também recebemos castigo os galegos com consciência lingüística: aos nossos ouvidos chegam constantemente dos meios da comunicaçom social insolentes enunciados a afirmarem, por exemplo, que no seio da família as crianças som seres escravizados, privados de liberdade («Os cativos da casa»), ou, como vimos, que a pobre Asunta, embora cativa, é ainda viva!!

P.S.: Estou certo de que muitos leitores deste artigo, devido à forte hipnose que sobre todos nós exerce o castelhano, nom se terám sentido suficientemente chocados, escandalizados, polos enunciados de registo formal aduzidos em que cativo se utiliza com o valor de ‘criança’...  Na tentativa de ilustrarmos esses leitores, vamos aplicar, entom, um expediente que sempre se revela útil para expormos as aberraçons do «galego oficialista» (para além do contraste com o lusitano e com o brasileiro), isto é, a transferência para o castelhano: seria aceitável, possível, que, num telejornal ou numha reportagem da rádio ou da televisom espanholas, um locutor dixesse, em referência às crianças, «los cautivos de la casa» ou «la cautiva Asunta»? O amável leitor terá de coincidir comigo em que nom!

Nota
Em relaçom ao tema do artigo anterior desta série, pode ser interessante deixar aqui constáncia de que o uso em galego da voz rata no seu sentido genuíno de ‘rato-fêmea’ é ainda atestado na língua espontánea contemporánea polos dicionários de Cubeiro (1876) e de Eladio Rodríguez (1958).

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