Opinión

Laranjada de limom, limonada de laranja!

A árvore rosácea que os botánicos conhecem como Cydonia oblonga recebe em galego-português a denominaçom vernácula de marmeleiro

A árvore rosácea que os botánicos conhecem como Cydonia oblonga recebe em galego-português a denominaçom vernácula de marmeleiro, e o seu fruto, a de marmelo. Nas variedades socialmente estabilizadas do galego-português, o doce pastoso que se prepara a partir da polpa do marmelo é chamado, naturalmente, marmelada, seguindo um padrom morfológico já presente na designaçom de outros alimentos derivados de frutos (assim, p. ex., de laranja, laranjada; de limom, limonada). Por outro lado, os doces pastosos elaborados mediante a cocçom e edulcoraçom de diversas frutas (como pêssego, laranja, morango, ameixa, etc.), e que tipicamente som barrados sobre o pam no almorço, denominam-se em lusitano e em brasileiro compota ou doce (da respetiva fruta).

Curiosamente, a palavra galego-portuguesa marmelada foi incorporarada no séc. XVI como empréstimo por várias línguas europeias, sofrendo nesta transferência um desvio maior ou menor da sua substáncia fónica e gráfica (cast. mermelada, fr. marmelade, al. Marmelade, ingl. marmalade) e umha alteraçom do seu significado original. Assim, tanto mermelada, em castelhano, como marmelade, em francês, ou Marmelade em alemám, designam o doce pastoso feito a partir de qualquer fruta (diferente do marmelo), enquanto que marmalade denomina, em inglês, o doce elaborado a partir de citrinos, sobretodo de laranjas (jam é a palavra utilizada em inglês para denominar as compotas feitas a partir de outras frutas). Nestas quatro línguas, portanto, os empréstimos derivados da marmelada galego-portuguesa nom se utilizam para designar especificamente a própria ‘marmelada’ —a qual é denotada em castelhano por (dulce de) membrillo (‘doce de marmelo’), em francês por pâte de coings (lit. ‘compota de marmelos’), em alemám por Quittenmarmelade (lit. ‘compota de marmelo’) e em inglês por quince jam (lit. ‘compota de marmelo’)—, e si compotas elaboradas a partir de frutas diversas [1].

Estamos aqui em presença de manifestaçons dos fenómenos da substituiçom e da suplência lexicais de palavras genuínas galego-portuguesas

Na atual fala espontánea galega, e em referência ao fruto do marmeleiro, podem apreciar-se diversos graus de substituiçom da voz tradicional marmelo, a qual, dependendo do tipo de falante (de maior ou menor idade, com residência rural ou urbana), pode aparecer com algumha freqüência usurpada polo castelhanismo *membrillo. Mais generalizada (se nom total) é a presença na atual fala espontánea do castelhanismo *membrillo em referência à ‘marmelada’ (quer dizer, ao doce ou compota de marmelo), circunstáncia que pode explicar-se, em primeiro lugar, por a voz marmelada se ter incorporado relativamente tarde ao galego-português (as suas primeiras abonaçons datam do séc. XVI), quando o léxico galego já padecia estagnaçom, e, em segundo lugar, por a marmelada constituir hoje em dia, cada vez mais, um produto de consumo comercializado e industrializado, que chega acompanhado do correspondente nome castelhano. Portanto, estamos aqui em presença de manifestaçons dos fenómenos da substituiçom e da suplência lexicais de palavras genuínas galego-portuguesas (marmelo e marmelada) por parte de palavras castelhanas, o que acarreta descaraterizaçom do léxico galego.

Por outro lado, embora o DRAG proceda a expurgar, para todos os seus usos espontáneos, o castelhanismo substitutório ou suplente *membrillo, e a restaurar em seu lugar marmelo, a esta última voz, surpreendentemente, aquele repositório «normativo» atribui o significado de ‘marmelada’, quer dizer, o de ‘doce de marmelo’ (marmelo: «[...] 2. Doce elaborado co froito do marmeleiro. Queixo con marmelo.»), com o que ele está a admitir para o modelo culto de galego um flagrante castelhanismo semántico. Esta gratuita castelhanizaçom semántica chega no DRAG ao aberrante ao considerarmos o significado que ele declara da voz marmelada: «Doce feito con froita cocida con azucre ou mel, de consistencia pastosa.». Com efeito, os compiladores do DRAG estám a propor aqui que a voz galego-portuguesa marmelada seja usada no atual galego, nom com o valor semántico que ela tem nas suas variedades geográficas plenamente normalizadas, mas com o significado, incoerente em galego, que ela hoje tem em castelhano, depois de este a ter tomado emprestada do próprio galego-português e de a ter desfigurado semanticamente! Castelhanizaçom semántica que atinge o paroxismo no exemplo de uso que da voz marmelada oferece o DRAG: «Marmelada de pexego», o que deixa claro que, ao redigirem este verbete —como muitos outros—, os dicionaristas da RAG estavam a pensar em castelhano, e nom em galego, pois, como, se assim nom fosse, poderiam eles prescrever um uso léxico-semántico que equivale a dizermos «laranjada de limom», «limonada de laranja»...? Verificamos, portanto, mais umha vez, que os codificadores da RAG procedem de um modo que contribui para descaraterizar o léxico galego por assimilaçom ao castelhano, mesmo quando esta castelhanizaçom atua em detrimento da mais elementar coerência interna da língua e quando transtroca o sentido do seu desenvolvimento histórico!

Notas

1. Naturalmente, que isto poda acontecer nas línguas recetoras do empréstimo marmelada é devido a que nestas, ao contrário do que acontece em galego-português, nom se produz a associaçom específica da palavra com o conceito de ‘marmelo’.

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