Opinión

Mouras, sexo e colonialismo

Na intimidade do leito uma parelha camponesa ama-se. No espaço mais privado e supostamente furtado do público, representa-se toda uma cosmovisão que se condensa na postura da cópula. “O coito –diz Kate Millet- não se leva a cabo no vazio, é um facto político.

Na intimidade do leito uma parelha camponesa ama-se. No espaço mais privado e supostamente furtado do público, representa-se toda uma cosmovisão que se condensa na postura da cópula. “O coito –diz Kate Millet- não se leva a cabo no vazio, é um facto político.

No mundo tradicional galego, estruturado em base às oposições homólogas bem/mal, deus/demo, homem/mulher, arriba/abaixo, etc., a ‘ordem natural’ pressopunha a dominação do masculino sobre o feminino. A inversão desta orden, com o feminino sobrepondo-se, dava origen ao mal e ao demoníaco. A doença, por exemplo, em tanto que mal feminino, combatía-se simbolicamente com elementos representativos do homem: chaleques, boinas (que em algumas partes chamavam “o macho”, e da que se podia dizer que estava “capada”) e sobretudo pantalões, emblema da masculinidade por excelência. Entre as defesas simbólicas, a popular figa representa a mesma conceção sexual: na maioria delas, explica Mariño Ferro, “o polegar mete-se entre o índice e o dedo médio representando o ato sexual, o triunfo do varão sobre a fêmea e, em sentido simbólico, o triunfo do Bem sobre o mal feminino”.

"No leito, o cancioneiro popular prescreve por ativa e por passiva que a única postura concebível no coito é a do homem sobre a mulher; no céu, a gente vê como se confirma essa “ordem natural”".

A pessoa socializada neste mundo, orienta todas as suas práticas e perceções conforme a esta lógica patriarcal, com tal coerência que, de céu à cama, astros, animais e pessoas parecem obedecer idénticas leis e motivações. No leito, o cancioneiro popular prescreve por ativa e por passiva que a única postura concebível no coito é a do homem sobre a mulher; no céu, a gente vê como se confirma essa “ordem natural”. Conta-se que em Ferrol, durante as eclipses de 1861 e 1890, o Sol e a Lua a brigarem numa astronómica “guerra de sexos”, tal como se fossem um moço e uma moça jogando às luitas. Apenas faltava que, como num desafio erótico de fiadeiro, o Sol lhe cantasse à Lua:

As mulheres são o demo
o demo si deus as deu;
debaixo de deus estão elas
e enriba delas eu.

Enquanto era a Lua a que dominava na eclipse, os frutos da terra eran destruídos imediatamente, pois consideravam-se malignos ao serem colheitados sob o dominio feminino. Só quando o Sol restituiu a “orden natural” pondo-se por riba da sua companheira (“fondendo-a”, “fazendo-lhe a figa”) se puderam comer as plantas sem perigo.

Quando os europeus colonizam América fazem-no desde estas estruturas do pensamento tradicional europeu, às que vão incorporando outras parelhas de oposições homólogas, como a de civilizado/selvagem. A “missão civilizatória” dos conquistadores era entendida e expressada conforme esta lógica sexual, que inunda as narrativas coloniais: a dominação colonial relata-se como uma história de amor; eis as gravuras nas que se representa América como uma linda indígena, despida e deitada perante Américo Vespuzzio, John Smith e Pocahontas, ou o galego Diogo Álvares ‘Caramuru’ e a indígena Catarina… O europeu toma América como uma mulher que submeter e ‘civilizar’ sexualmente, à vez que toma sexualmente a mulher como um continente que saquear.

FAZER-LHE A FIGA À MOURA

No modulo de isolamento a serie televisiva “Príncipe” colheu-nos preparados: um dos companheiros norara nesse bairro de Ceuta antes de cruzar o estreito, e eu mais outro marroquino estábamos a ler e comentar Orientalismo de Edward W. Said, o livro no que o palestiniano denuncia a relação de poder na que os europeus foram configurando, em base a estereótipos, a imagen do “oriental” como inferior, e polo tanto necessitado da tutela colonial.

"A mulher –expõe a antropóloga Mar Llinares- é temida; e resulta perigosa se não está debidamente controlada polo homem. O meio de controlo resulta ser o submetimento sexual ao varão"

“Príncipe” é a história dum polícia espanhol que chega à colónia de Ceuta e, como un herói civilizador resgata uma formosa áraba do seu entorno familiar: um conglomerado de narcotraficantes e terroristas islamistas que pretendem que case mediante matrimónio concertado. Na cena culminante, o polícia, seguindo à vez ordens dos seus instintos e dos seus superiores, consegue finalmente deitar-se com a moça. Para maior simbolismo, a cámara demora-se no jeito com que ele, ao despi-la, lhe atira o veu islámico ao chão. A mussulmana renuncia à sua atrassada cultura através do sexo com o espanhol…

Curiosamente, no mesmo capítulo há uma cena análoga, que porém se pretende contraposta: na rua, um grupo de fascistas do exército atacam a mãe da moça, sacando, cuspindo e pisando-lhe o veu.

Na Galiza, como é sabido, muitos homens foram seduzidos por belas mouras, mulheres de cavelos rúvios, pele branca e sexualmente ativas, com as quais era fácil cair no seu fatal encanto. “A mulher –expõe a antropóloga Mar Llinares- é temida; e resulta perigosa se não está debidamente controlada polo homem. O meio de controlo resulta ser o submetimento sexual ao varão, que nos relatos de mouras adquere expressão mediante metáforas de desvirgamento como são arrincar uma flor que a moura transformada em serpe (…) leva na boca, ou fazer-lhe uma ferida que sangue”. Ou atirar-lhe o veu ao chão…

A ‘SCHOLÉ’ DE IUSUF

“Príncipe” é a versão de massas da volta ao mussulmano como principal inimigo de Espanha. “Os problemas de Espanha com Al Qaeda começaram no século VIII”, assegurava José María Aznar na sua aula inaugural em Georgetown. Há uns anos, em plena caça de bruxas, um juiz estrela enviou sem nenhuma prova um mussulmano de Barcelona a prisão. Posteriormente tivo que ser posto em liberdade, por não haver indícios de delito, mas no momento o juíz permitiu-se fazer-se o experto com um sarcasmo, sugerindo-lhe ao detido que se alegrasse, posto que o enviava “à escola de Iusuf”.

O Alcorão conta a história de Iusuf, famoso pola sabiduria para interpretar os sonhos que adquere na prisão. De aí que se fale da “escola de Iusuf” quando, no mundo islámico, alguém converte o encerro em Scholé. É mui popular, por exemplo, o caso de Sayyid Qutb, inteletual egício que transitara do marxismo ao islamismo, intentando uma interpretação anti-capitalista do Islão. Preso como militante dos Irmãos Mussulmanos, Qutb organizara no carcere o sistema de formação do coletivo, preparando temarios e redigindo libres. Já mui grave, ingressado no hospital do cárcere, alegrava-se de que os militares não lhe proibiram a leitura, o papel e o lápis.

SÃO PAIO, PATRÃO DOS PRESOS GALEGOS

Na Galiza temos um caso de Scholé carcerária na história de São Paio, para Vicente Risco um dos “santos nacionais galegos” e para Carlos Callón “mártir da homofobia”. Conhecemos a sua vida pola Passio Pelagi de Raquel, escrita por encargo da igreja de Tui a meados do s. X. “Pois bem, -diz o livro- naqueles tempos, em que se desatara uma ferocíssima trevoada contra os cristãos, sucedeu que os seus inimigos de Espanha inteira se punham em movimiento contra a Galiza, com fim de que, se podia ser, uma vez arrassada totalmente, o poder estrangeiro se apoderasse de todos os seus fieis”. É neste contexto que o joven galego Paio cai, em terras espanholas, preso por Abderramão III. “Mas figeram-se presentes as costumadas graças de Deus, que de tal jeito iluminaram este Paio, que consideraba a cadeia uma prova e a lima dos seus pecados diários, sem os quais a fragilidade humana não pode viver”. E continua a narração de propaganda político-religiosa do preso em Córdova: “Ali ele era casto, sóbrio, aprazível, prudente, atento a orar, assíduo à leitura, não esquecia os preceptos do senhor, era promotor de boas conversas, não participante nas más, não proclive ao riso…”

"“Príncipe” é a versão de massas da volta ao mussulmano como principal inimigo de Espanha. “Os problemas de Espanha com Al Qaeda começaram no século VIII”, assegurava José María Aznar na sua aula inaugural em Georgetown".

Em 1991 as universidades de Vigo e Compostela publicaram uma edição crítica da Passio Pelagi, traduzida e comentada. No texto original, em latim, fala-se da “Gallaecia” e a “Hispania”, os reinos cristão e mussulmano respeitivamente em que se dividia a península. Porém, o tradutor quer aclarar que “Gallaecia equivalía al ‘Reino de León’”.

PICAR PEDRA

Este tradutor da Passio Pelagi entronca com uma longuíssima linhagem de canteiros do esquecimento, como o que pico una Porta Nova de Viveiro, até que a sua inscrição do s. XIII ficou assim:

ERA: M:CC:L.V

IN TENPO : R: AF

(………..) R: (………….)

Na parte picada dizia-se que Afonso VIII –o Afonso IX da historiografia espanhola- era “Rei da Galiza”. Afonso VIII, finado em Sárria em 1230, está sepultado na catedral de Santiago, num Panteão Real galego que é mais difícil de encontrar que a casa de banhos. Sem dúvida porque picá-lo seria demasiado custoso…

No seu tempo Manuel Marguía criticava que Morayta, autor duma Historia General de España, traduzisse, na crónica de Al-Razi, a palabra “Djalikyah” (Galiza no árabe da época) por “Cantábria”.
Na edição da crónica de Al-Maccari de 1840, a cárrego do P. de Gayangos, “Ardhu-l-jalakah” (o país dos galegos) aparece em espanhol como “Galicia y Asturias”.

Modesto Lafuente, o pai da historiografia espanholista, publica em 1850 a sua Historia General de España. No livro inclui um mapa onde delimita o reino que os árabes chamavam da Jalikia, Galiza, mas sobre o nome árabe traduze em letras mais grandes: “Reino de León”.

Em 1981 Viguera, Corriente e Lacarra editam em espanhol a obra do cronista cordovês Ibn Haian, do x. X. Onde Ibn Haian escreve “al-Yalalika” (o galego), os editores corrigem por “leonés”. No apéndice toponímico, explica-se que “Yalliqiyya” (Galiza) é “el territorio cristiano en ese tiempo capitalizado en León”, uma longa perífrase por não dizer a palavra tabu.

IBN MARWAN AL YILLIQI

Eduardo S. Maragoto, Vanessa Vila Verde e João Aveledo documentam, no filme “Entre línguas”, uma teoria sócio-lingüística sobre os falares das comarcas arraianas entre Espanha e Portugal: que lá onde as línguas castelhana e portuguessa se encontram, surge o “gallego”. Em Topas, prisão arraiana, há muitos portugueses que verificam esta teoria a diario. Quando levam aquí um tempo vai-se-lhe castelhanizando o falar, de forma que soam mais “agallegados”. Durante meses tivem de vizinho o Pedro, um rapaz de Lisboa que, desde a cela do lado, me despertava cada dia con canções do Rei Ede ou do Valete. Um espectáculo. O avô zangava-se-lhe nas visitas, porque o neto semelhava que esquecera o português para agalegar-se, isto é, falar como a gente do Porto.

"Quando historiadores como Anselmo López Carreira recordam que nos documentos árabes e europeus da Alta Idade Média, à parte islámica da Península Ibérica se lhe chamava Espanha, e à cristã Galiza, sempre há quem se escandaliza".

Também me encontrei com um nativo que sabe que aqui há comarcas com falas galegas, também pola parte de Estremadura.

Pegadinha à raia, e baixando cara ao Sul, encontra-se a formosa vila alentejana de Marvão, um enorme navio branco sulcando a Serra de São Mamede. Passou de mãos árabes a cristãs em 1160, e a finais do s. XIII, quando Dom Dinis e Fernando IV assinam o Tratado de Alcaniaz, converte-se em parte da linha defensiva Portugal-Castela. Chama-se Marvão em memoria do seu fundador, Ibn Marwan, alcumado de “al-Yilliqi”, o Galego; polo menos até que não o corrijam por Ibn Marwan El Leonés.

A LÍNGUA DOS MOUROS

Quando historiadores como Anselmo López Carreira recordam que nos documentos árabes e europeus da Alta Idade Média, à parte islámica da Península Ibérica se lhe chamava Espanha, e à cristã Galiza, sempre há quem se escandaliza. O avô de Pedro não, para ele os de Faro são “mouros” e os de Chaves “galegos”. Também neste sentido, a sabiduria popular galega tem muitos menos preconceitos que os ilustres catedráticos: aquí os mouros falam espanhol, especialmente se são maus. Sabe-o bem aquele vizinho de Vila Rubim que prenderam os mouros. Meteram-no numa arca para cebá-lo e comê-lo quando estivesse bem gordinho, mas o labrego suplicou ajuda à Virgem da Barra. Esta, dando-lhe auxílio, fijo que a araca aparecesse na Barra, onde os sinos repenicavam sós em som de alarme. O mouro, que estava sentado sobre a arca para que não lhe escapasse o galego, tremeu de medo, e começou a cantar:

“Cristianillo, cristianillo,
en tu tierra cincirría,
no me hagas ahora en tu tierra
lo que yo quise hacerte en la mía”.

OS MAIOS DO REI GARCIA

Há umas semanas a medievalista Margarita Torres anunciava em televisão um descobrimento surpreendente: o Santo Grial, o grande mito da arqueología, teria sido encontrado na basílica de São Isidoro de Leão; onde segundo Frei Manuel Risco, estaria a tumba do rei Garcia, morto encadeado. O cálice de Cristo, explica Margarita Torres, foi um presente do emir de Dénia o rei Fernando, quem à sua vez o doaria à sua filha Urraca. Sempre segundo as crónicas árabes, o emir conseguiria o Santo Grial polo governador de Egito, quem o envía à cidade de Leão desde Terra Santa, através dum pelegrim da Jalikia. E aqui é onde a historiadora tem que aclarar: “palabra –Jalikia- con la que el Reino de León aparece en las crónicas árabes”. O programa de televisão continuou com uma reportagem sobre os lobos da gente em Chantada.

***

Traiçoado e encadeado polo seu irmão Sancho, os pikoletos levaram Garcia de kunda da Santarém a Coímbra, “e partieron un dia de mayo. E yendo por a par de la fuente del agua de mayas, donde toman las moças el agua, e nenbróssele a los caballeros que esa primero dia de mayo e començaron a yr cantando las mayas. E el rey don Garcia en que los oye yua llorando”. Dentro do kanguro, um jai, vendo o percal, ofereceu-lhe um porro que os bokis não lhe cachearam. Iam expulsá-lo ao outro lado do monstro de arame farpado. “España macrocárcel amigo. Mucha mierda”.

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