Opinión

Três momentos na armadilha do reconhecimento

1. A caça de bruxas com a qual Europa entrou na Modernidade tivo como inovação repressiva


 

1. A caça de bruxas com a qual Europa entrou na Modernidade tivo como inovação repressiva uma série de tecnologías de construção do inimigo; o novo poder já não se contenta com aniquilar o inimigo, também quer produzi-lo e verificar uns signos. O manual de inquisidores Malleus maleficarum (para Eugenio Raúl Zafforini trata-se do texto fundador do direito penal europeu (1)) codifica o que até então eran apenas uma constelação de corpos, práticas e crenças alheias à orden do Estado e da Igreja, unificando-as e regulamentando-as até que rematam por completar um imaginário do mal que, com o tempo, os próprios antagonismos rematarão assumindo como próprio. O proceso, claro, não foi imediato nem espontâneo, requeriu de imensos recursos, de imensa dor. “Pensei amiúde”, apontou Friedrich von Spee no século XVII, “que a única razão de que não sejamos todos bruxos, é que não todos temos sido torturados. Encerra uma grande verdade o que um inquisidor se atreveu a manifestar recentemente, em tom jactancioso, a saber: que se ele pudesse botar-lhe a mão enriba ao papa, obrigaria-o a confessar que ele também é bruxo” (2). Carlo Ginzburg estudou o caso dos benandanti (3), camponeses do Friul dos séculos XVI e XVII que dizian participar, em sonhos, numa espécie de rito agrário parecido aos ritos galegos do espírito do grão (4). “Os inquisidores, visivelmente estupefactos, intentaram reconducir este relato ao esquema do aquelarre diabólico; porém, a pesar das suas pressões, tiveram de pasar quase cinquenta anos antes de que os benandanti decidiram, entre dúvidas e arrependimentos, modificar as suas confessões no sentido requerido (5)”. Muito mais tardaram ainda em aparecer novos antagonismos que se expressavam conforme o guionizado polo Malleus, mas apareceram.
 
2. Michel Foucault é indispensável para compreender o poder mais lá da repressão, como umas forças que também produzem: imaginários, saberes, subjetividades… O momento histórico em que o poder passa de ser uma instancia negadora para pôr-se a producir identifica-se, em Surveiller et punir, com o nascimento da prisão. Esta, “e de maneira mais geral os castigos, não estão destinados a suprimir as infrações, senão mais bem a distingui-las, a distribui-las, a utilizá-las; que tendam não tanto a tornar dóceis quem estão dispostos a transgredir as leis, senão que tendam a organizar a transgressão das leis em uma tática geral de submetimentos (6)”. Antes da criação carcerária da “delinquência” uma grande panoplia de práticas, anónimas e sigilosas, erodiam o poder na vida quotidiana: furtivismo e roubo de lenha nos terrenos cercados dos ricos, roubo de mercadorias nas descarregas de barcos, pequenas sabotagens nas indústrias, etc. Formas de resistência que o joven Marx reconhecia nos seus escritos da Rheinische Zeitug, e que Foucault denomina como “ilegalismos”. Com a prisão como catalizador, emerge o imaginário de uma ilegalidade separada da comunidade e da sua vida quotidiana, nasce a “delinquência”, tal e como nasceu o “revolucionário profissional”. É então que se propaga por toda a parte –às vezes em folhas vendidas em feiras e romarias- uma sorte de literatura percursora da negra, que exalza a delinquência através dum discurso ambivalente, ora apologético ora condenatório, protagonizado por umas personagens igualmente ambivalentes: eis a reversibilidade do delinque/polícia típico desta literatura. Foucault, completamente hostil a esta literatura, recusava esses relatos porque neles “celebrava-se a figura simbólica de um ilegalismo asegurado à delinquencia e transformado em discurso –é dizer convertido em duas vezes inofensivo (7)”. 

3. Gilles Deleuze analisou a armadilha do reconhecimento com especial contundencia. Por uma parte, o reconhecimento é contrário do encontró, e os grupos políticos supostamente emancipatórios não deixam de pedir aos berros reconhecimento por parte das multidões. Por outra, também se procura o reconhecimento do poder, evidenciando uma brutal dependencia: “Também há quem reclamam serem julgados embora só seja para que se os reconheça culpáveis (8)”, sentença Deleuze com toda dureza. Atrapados na armadilha do reconhecimento os movimentos subversivos exigem ao poder serem reconhecidos como tais. O coletivo Tiqqun desenvolve com insistencia a fuga desta armadinha. Partem de que 1) “Todo dispositivo produze singularidade a modo de monstruosidade. Assim afortalece-se”; e 2) “Uma não pode libertar-se de um dispositivo comprometendo-se com o seu termo menor”. Em consequência chamam a “dotar-nos da apariencia de puro conformismo (…) O que implica, por exemplo, despedir-nos da pseudotransgressão das não menos pseudoconvenções sociais, revocar o partido da “sinceridade”, da “verdade” e do “escándalo” revolucionário em benefício de uma cortesia tiránica, graças à qual cabe manter à distancia o dispositivo e os seus possuidos. A transgressão, a monstruosidade e a anormalidade reivindicadas conformam a trampa mais retorcida que os dispositivos podem tender-nos (9)”.

NOTAS

1. Para Italo Mereu a herdança inquisitorial no sistema legal deteta-se na aceitação da acusação anónima, na figura da detenção preventiva ao no trato às pessoas detidas (Historia de la intolerancia en Europa, Barcelona, Paidós, 2003, (1979)).
2. Cit. em Vignati, Arde bruja, mago arde, Barcelona, A.T.E., 1973, p. 141. A detenção incomunicada da “lei anti-terrorista” é o parêntese inquisitorial no Estado de Direito que permite continuar a aplicar estas técnicas. Um bom exemplo deu-se nos últimos julgamentos contra militantes de Segi. Um dos jovens, ao saber que estaba a ser investigado, solicitou várias vezes poder declarar voluntariamente, ao qual se negou o juiz da Audiência Nacional, para posteriormente ser detido sob regime de incomunicação, conseguindo assim uma auto-inculpação através destas técnicas.
3. C. Ginzburg, I benandanti: Stregoneria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, 1974 (3ª ed.).
4. Fernando Alonso Romero, “El espíritu del grano: tradiciones agrícolas propiciatorias en Galicia y en otras comunidades europeas”, Cuadernos de Estudios Gallegos, Tomo XLI, Fascículo 106, 1993-1994, pp. 367-389.
5. C. Ginzburg, Historia nocturna. Las raíces antropológicas del relato, Barcelona, Península, 2003, p. 31.
6. M. Foucault, Vigilar y castigar, Madrid, Siglo XXI, 1994 (1975), p. 277.
7. G. Deleuze e C. Parnet, Dialogues, Paris, Flammarion, 1997. 
8. “Une métaphysique critique pourrait naître comme sciences des dispositifs…”, Tiqqun, disponível em: www.bloom0101.org

 

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