Opinión

Os “materiais preciosos” de uma geração de mulheres

Em pleno estado de choque pola ofensiva neoliberal, a equipa de Pierre Bourdieu intentou conjurar a sua perplexidade com um monumental livro coral de entrevistas às vítimas dessa brutal rutura do pacto bem-estarista de após-guerra. La misère du monde, aliás, aparecia minuciosamente balizado por uma série de prevenções epistemológicas -quase abrumadoras- que consagravam definitivamente a entrevista como excecional método de conhecimento sociológico, onde entrevistada e entrevistadora seriam idealmente copartícipes desse saber gerado em uma relação quase socrática. Agora, com o Estado espanhol liderando os incrementos de desigualdades e a dominação masculina mutando e recuperando terreno, Julia Varela vem de dar a palabra neste livro a onze mulheres da “geração do 68”, de uma trabalhadora do Morraço a uma ex ministra do PSOE, que compartem generosamente os seus “materiais preciosos”: as aprendizagens de um caminho andado cara à emancipação. 

Julia Varela vem de dar a palabra neste livro a onze mulheres da “geração do 68”, de uma trabalhadora do Morraço a uma ex ministra do PSOE

 

A socióloga galega já pugera a prova o método da entrevista em 2004, quando dera voz às vizinhas da sua aldeia natal da Ulfe, de onde resultaria o livro A Ulfe. Socioloxía dunha comunidade rural galega. O método tem ainda certo efeito de rutura na Galiza, por quanto a folclorização da cultura deu longa vida a esse relação tipicamente moderna entre o povo “em si” e o povo “para si”, em que os especialistas no “popular” recolheriam do povo passivo e inconsciente os seus materiais preciosos. Muito mais sério e respeituoso tem sido outro trabalho pioneiro agora reeditado, Autobiografía dun labrego, onde Manuel de Roxo relatava a sua vida ao antropólogo Xosé Ramón Mariño Ferro, embora com uma focagem mais ao estilo de Oscar Lewis do que da sociologia crítica. 

O conjunto das histórias de vida recolhidas em Memorias para hacer camino subdivide-se em dous grandes blocos: o das mulheres das classes populares -com tradição militante operária ou não- e o das mulheres burguesas. Quanto às primeiras, serve de chave interpretativa o valioso conceito do “feminismo popular”, forjado por Pilar Díaz Sánchez, para se referir a essas mães trabalhadoras que seguiram a estratégia de atingir certa autonomia económica indo a trabalhar fora da casa, para assim poder ajudar às filhas e filhos na sua formação, visando que esta segunda geração culmine a emancipação iniciada. Também destaca Varela a sabedoria relacional destas mulheres, que não tendo habitual muitas amigas, sim souberam establecer redes familiares extensas de ajuda mútua. 

Da mulher burguesa já se ocupara Varela no seu Nacimiento de la mujer burguesa, e um dos seus últimos livros, Mujeres con voz propia, é uma cala na geração imediatamente anterior à da que agora se ocupa, compondo umas histórias de mulheres notáveis esquecidas ao jeito do Women on the Margins de Natalie Zemon Davis. Mas agora cede-lhes diretamente a palabra, socializando importantes vivencias para recompor o longo caminho andado polas mulheres do Estado nas últimas décadas -dos processos de autoorganização à libertação sexual-, coincidindo quase unánimemente as protagonistas no caráter sempre provisional das conquistas sociais. 

A socióloga galega já pugera a prova o método da entrevista em 2004, quando dera voz às vizinhas da sua aldeia natal da Ulfe

Na apresentação, Julia Varela recorda a importância fulcral de ter sempre em conta a força dos condicionamentos sociais, para evitar cair em leituras psicologizantes. Este combate com as disciplinas “psi-“ e os seus riscos é uma característica fundamental de toda a sua trajetória, e aquí explicita-o de novo com total claridade: “A pretendida total autonomia do eu, promovida entre outros por todos aqueles que nos asseguram que tudo está na mente, oculta que a nossa singularidade é o resultado de interações e de redes sociais que regulam e dão sentido à nossa existência. Vivemos em um mundo cada vez mais individualizado, em que a ficção de um eu totalmente autónomo nos empece perceber o enorme peso das classes sociais e das relações de classe nas nossas vidas. O espelhismo de uma psicologia desvinculada do social cria falsas expetativas ancoradas em uma espécie de omnipotência do eu, o que serve não só para gerar muitas frustrações e mais dependência ao introducir os sujeitos em uma espécie de nebulosa irreal, senão que contribui também a convencer-nos de que estamos sós, isto é, oculta zelosamente que dependemos dos demais, e que até os sentimentos mais íntimos, zelosamente guardados no nosso interior, estão atravessados polas relações sociais. Unicamente se aceitamos uma sociabilidade constitutiva da nossa singularidade nos sentiremos fortes para um trabalho em cooperação, um trabalho bem feito baseado na ajuda mútua” (pp. 15-16). 

Rascunho de um habitus crítico

Trajetórias sociais semelhantes costumam engendrar uns perfis epistemológicos igualmente semelhantes; neste sentido a sociologia de Julia Varela tem um inegável ar de família com a sociologia crítica francesa, produzida por uma das primeiras gerações de origem popular que acedem à universidade e à elite investigadora, conservando umas disposições próprias das suas origens sociais: a evidência do social como um campo atravessado por relações de forças que, en tanto que vividas pessoalmente, preveem de qualquer tentação populista; e uma conceção da sociologia como profissão rigorosa, escolhendo sempre pagar polo conhecimento um preço mais elevado para um benefício de distinção muito menor. 

Nada da Ulfe (Chantada), Julia Varela era a filha da mestra, de quem herdará a profissão e as disposições associadas a ela: figura anfíbia e deslocada, a mestra rural une dous mundos sem pertencer a nenhum: no rural ocupa um posto notável na comunidade, no mundo cultural permanece no chanço mais baixo da hierarquia acadêmica. Esta ambivalência estrutural produz uma lucidez social especial, mas ao preço de viver, como as emigrantes, um habitus cindido que enlaça mundo sem reconciliá-los. 

Os seus próprios inícios como mestra rural (que viverá em Chantada a luta da comunidade polo seu monte comum) dão conta de uma chegada à sociologia que nada tem a ver com a de quem, ocupando uma posição social superior, aliás, ainda tem a ver com essas ruturas mais simbólicas do que políticas, de “transgressores” ao jeito de Bataille e outros pensadores de origen burguês. 

O espelhismo de uma psicologia desvinculada do social cria falsas expetativas ancoradas em uma espécie de omnipotência do eu

 

Junto com Fernando Álvarez-Uría forma um tándem especialmente frutífero. Quando vão completar a sua formação à vanguardista Universidade de Vincennes, onde se podiam escolher as matérias mais extravagantes que se podem imaginar, significativamente optam pola humilde sociologia da educação, incorporando-se aos grupos de trabalho dirigidos por Jean-Claude Passeron e Robert Cartel, à vez que frequentam os cursos e seminários de Bourdieu e Foucault, desfrutando o estremadamente estimulante ambiente inteletual da época. Já em Madrid vai ser fundamental o seu trabalho na editorial La Piqueta, traduzindo e divulgando clássicos do pensamento crítico ainda pouco acessíveis deste lado dos Pirineus. Na coleção “Genealogía del Poder”, publicam juntos El cura Galeote, asesino del Obispo de Madrid-Alcalá. Proceso médico-legal e Arqueología de la escuela –livro de renovado interesse para o movimento pedagógico das escolas Semente-. 

Com a publicação de A Ulfe, Julia Varela completava uma sorte de reconciliação entre os dous mundos separados a que estão condenados os habitos cindidos, saudade estrutural que também intentou suturar Pierre Bourdieu em Le bal des celibataires. Curiosamente, nos dous casos a socióloga tende a diluir-se na investigação na comunidade natal: no primeiro caso são diretamente as vizinhas quem falam; no segundo, toda a panoplia objetivadora visa conjurar toda referência pessoal. 

Julia Varela (com estudos de Pilar Parra e Alejandra Val Cubero), Memorias para hacer camino, Madrid, Ed. Morata, 2017

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