Opinión

Lembrança galega de E. P. Thompson

Após uma parêntese para liderar junto com Bertrand Russell o movimiento antinuclear, o historiador marxista E. P. Thompson voltava à luta teórica com a publicação do Costumes em comum (1). Na mesma introdução Thompson já alertava da iminência duma crise sistémica acompanhada do desastre ecológico: “O artífice desta catástrofe –denunciava- será o homem económico, já seja sob a forma do capitalista clásico avariçoso ou sob a do homem económico da tradição marxista”. 

I

Após uma parêntese para liderar junto com Bertrand Russell o movimiento antinuclear, o historiador marxista E. P. Thompson voltava à luta teórica com a publicação do Costumes em comum (1). Na mesma introdução Thompson já alertava da iminência duma crise sistémica acompanhada do desastre ecológico: “O artífice desta catástrofe –denunciava- será o homem económico, já seja sob a forma do capitalista clásico avariçoso ou sob a do homem económico da tradição marxista”. O inglês, que nos ensinara a ver a história “de baixo”, apelava então a criar uma nova “consciência consuetudinária” na qual, “mais uma vez, sucessivas gerações se encontrem em relação de aprendizagem umas com outras, na qual as as satisfações materiais permaneçam estáveis (embora distribuídas com mais igualdade) e só as satisfações culturais aumentem, e na qual as expetativas se nivelem e formem um estado de costume estável” (2).

II

Na senda dos trabalhos clásicos de Engels e o próprio Thompson, Oweb Jones volve situar a classe operária no centro do debate político inglês, com o livro Chavs. The Demonization of the Working Class (3). Destruída como cultura disidente polo thatcherismo, “etnificada”, terceriarizada e apagada da linguagem política, a velha classe trabalhadora parece ter desaparecido entre a vitória da classe média. Para evitar confussões, Jones invita a superar a imagen mitológica do mineiro de mono azul, e começar a pensar na teleoperadora, que propõe como novo símbolo trabalhista.

"mesmo se poderia dizer na Galiza, onde centos de mulheres trabalham em pésimas condições atendendo chamadas, cronometradas mesmo para ir ao banho. Um dos métodos deste fabrilismo digital é a proibição das relações horizontais entre trabalhadoras",

O mesmo se poderia dizer na Galiza, onde centos de mulheres trabalham em pésimas condições atendendo chamadas, cronometradas mesmo para ir ao banho. Um dos métodos deste fabrilismo digital é a proibição das relações horizontais entre trabalhadoras, e o incentivo da competitividade entre elas através da publicação diária de rankings e rendimentos individuais. A genealogia desta técnica de exploração não podia ser mais inesperada: inventou-na o socialista utópico Robert Owen. Este introduzira na sua fábrica de New Lamark umas caixinhas de madeira chamadas “monitores silenciosos”. Cada caixinha, colocada no posto de trabalho de cada operário, permitia ao superior avaliar o rendimento diário de cada trabalhador com uma só olhada; um sistema de cores recolhia a avaliação na caixinha: preto/mau, azul/indiferente, amarelo/bom e branco/excelente. Desta maneira cada trabalhador convertía-se em rival do seu companheiro, e objetivava-se, obviando qualquer consideração humana, o trabalho realizado. O despedimento devia lei natural.

O invento do Owen é um primeiro exemplo de homo oeconomicus socialista, que entrará en apojeu com o “desarrolhismo” comunista. Do mesmo jeito que Jameson defende que a queda da URSS se deveu “não ao seu fracasso, senão ao seu sucesso, polo menos no que atinge à modernização” (4), a atual economia chinesa representa o resultado dum comunismo que não supera as categorias económicas do capitalismo. Há toda uma história de amor secreta entre as duas ideologías da modernidade, que vai do namoramento de Lenin com o taylorismo ao desejo ocidental duns direitos laborais à chinesa. Este paradoxo acha-o Carlos Fernández Liria expresado nos romances de Platonov: “uma reflexão inquedante e desquiciada sobre o insólito desaguisado antropológico que supujo o empenho socialista de intentar atingir por meios políticos o ritmo económico do capitalismo”; para o filósofo madrileno, “a URSS foi o espelho antropológico do capitalismo exterior. É dizer: isso é o que teria que passar se o ser humano tivesse que decidir politicamente isso que ao capitalismo lhe sai sozinho” (5). 

III

Entre os mais caros materiais de E. P. Thompson contam-se os poemas de John Clare, testemunha impagável do trauma social que supugeram os cercamentos de comunais no agro inglês. John Clare, como um neno galego ao que a concentração parcelária destruiu a pátria da sua infância, retorce-se de dor recordando o mundo amputado, a alegria das carreiras na erva e as fartas de amoras que já não volverão:

"John Clare, como um neno galego ao que a concentração parcelária destruiu a pátria da sua infância, retorce-se de dor recordando o mundo amputado, a alegria das carreiras na erva e as fartas de amoras que já não volverão"

“Junto a floresta de Langley ando sem rumo mas a floresta abandonou o seu outeiro, 
por um selvado cercado perdo-me neste deserto estranho e frio,
e extensos prados e tupidos carvalhos antes de declinar tinham escrito a sua vontade
antes de cair sob a machada do destrutor e o interesse egoísta,
e caminho de groselhas e estreita corredoira de velhos e redondos carvalhos
com os seus troncos ocos como púlpitos que nunca voltarei ver
o cercamento como um buonaparte nada deixa que permaneça;
arrassou todos os arbustos e árvores e nivelou todos os outeiros
e pendurou as toupas por traidoras… embora o regato ainda corre
a sua corrente despida e fría” (6).

Thompson aponta que Clare escreve num “dialeto que no século XVIII se estava a converter, não no meio de fala local ou regional, senão na fala plebeia regional, e que é em si mesmo o sinal de certa classe de consciência consuetudinária” (7). Quiçá o conceito de “consciência consuetudinária” poda ter certa utilidade na sociolinguística galega, para encontrar um caminho entre o populismo e o miserabilismo que amordaçam as visões sobre a língua na Galiza tradicional.

IV

Quando há uns anos José de Barbeiros viajou a Londres para conhecer a cidade à que emigrara a neta, não pudo senão ficar maravilhado perante o verdor de Hyde Park. “E como seria tudo isto botado a milho!”, perguntava-se admirado. E. P. Thompson emocionaría-se com o suspiro do galego, pois o historiador recordava que “Londres e os seus redores não teriam parques hojee m dia se os comuneiros (commoners) não tivessem defendido os seus direitos, e à medida que o século XIX foi decorrendo os direitos de esparcimento figeram-se mais importantes do que os direitos de pasto, e foram defendidos zelosamente pola Commons Preservation Society. A estes “verdes” prematuros debemos os pulmões urbanos que temos” (8). Contudo, “este poderia ser um processo de duas vertentes. As terras comunais que eran contíguas às cidades podiam converter-se em zonas marginais com reputações turbulentas e duvidosas, e os parques públicos regulados podiam ser uma maneira de extinguir direitos e impor disciplina social” (9). Isto é: a gentrificação do monte comunal.
 

Post scriptum: Uma notícia no jornal recolhe a notícia da volta da vezeira aos pastos comunais de Paris; a cámara municipal caiu na conta de que é absurdo gastar dinheiro público em cortar a erva quando se pode manter ovelhas come la.

V

“A pobreza fica sempre com ganas.
Sim, a paisagem pinge para os ricos do marco
duma janela, e só para eles se anima a 
mão magistral de Deus”.
Walter Benjamin, Sombras breves

Como a estética burguesa e kantiana contrapõe a forma à substância e o belo ao útil, apenas pode encontrar a formosura onde não fique rasto da produtividade, a diferença da cultura labrega, para a qual a beleza é imanente ao trabalho: as canções que acusam o ritmo da tarefa, a obsessão polos regos bem direitinhos, a exigencia de que todos os monlhos sejan iguais, et cetera. Do duro enfrontamento entre a horta e o jardim, translação agrária destas estéticas, dá conta um acendido artigo duma publicação arredista do exilio:

"Quiçá esqueçamos que há um vínculo e um gozo com a terra, só que diferente à da estética burguesa. Seja como for, o certo é que há numerosos textos no galleguismo sobre a indiferença do labrego cara à paisagem"

“A um desses espanhóis que costuma fazer caprichosas afirmações sem fundamento e sem lógica alguma, ocorreu-se-lhe dizer em certa ocasião que o primeiro verso da cantiga de Curros Enríquez, que no seu original dizia “Unha noite no xardín sentada”, o modificou o público galego, dizendo “Unha noite na aira do trigo”, PORQUE NA GALIZA NÃO HÁ JARDINS (…) A tese apontada polo aludido espanhol não pode ser mais ridícula nem mais disparatada, por quanto a Galiza toda é um jardim encantador; e na aldeia rural do país galego há cerca ou junto a cada casa um horto que compite em beleza com o mais formoso jardim de qualquer capital de outras nações” (10).

A natureza, como terra reservada à contemplação da olhada burguesa, descobre-se quando o resto do território é desacralizado, mercantilizado e poluido; a natureza como arte, o paisagismo, constrói-se despejando da terra quem a trabalha: eis o “dark side of the landscape” do que fala John Barrell (11). Literalmente, algumas das primeiras “paisagens” e jardins foram criados pola gentry cercando comunais (12). Ás multidões, evidentemente, não se lhes escapava que o selvado –“deserto estranho e frio”- era um símbolo de classe, que pisavam gostosamente às agachadas quando podiam, ou à luz do dia e desafiantes quando prendía a revolta. Costume que vai daqueles pioneiros labregos da Revolução Francesa, que sacharam os jardins de Versalhes, às independentistas galegas que plantam leitugas nos campos de golfe, ao jeito de Bill Mollison.

VI

Talvez se tenha exagerado a impossibilidade da olhada paisagística para as labregas: sujeitas à terra polo trabalho, nem têm a distancia nem a skholè suficientes para que, vista como objeto, a terra devena paisagem. Quiçá esqueçamos que há um vínculo e um gozo com a terra, só que diferente à da estética burguesa. Seja como for, o certo é que há numerosos textos no galleguismo sobre a indiferença do labrego cara à paisagem, mas nenhum tão formoso como o de Pasolini no seu Atti impuri. Na sua etapa no Friul, Pasolini lembra um passeio por Viluta com sua mãe e Dina, fascinados pola paisagem, “aquela obra mestra que tinha algo de tonificanto”. De repente encontram-se com Nisiuti, o amado de Pasolini:

“-Que, Nisiuti, não vês nada? –perguntei.
Nisiuti, que já se nos adiantara, detivo-se surpreendido, e com algo de vergonha perguntou à sua vez: -Quê?
-Estás cego! –dixem-lhe fingindo indignar-me um pouco-. Estás cego! No céu estão a ocorrer estas milagres, e tu nem sequer te dás conta. É que não te fixaste que sol-pôr?
-Vejo-a –dixo, sorrindo, Nisiuti-, mas que lhe vamos fazer? Nós, os camponeses, não podemos prestar atenção a estas cousas”.
De volta à aldeia, já rematado o passeio, encontram-se de novo com o moço:
“De pé sobre esse tecto estava Nisiuti, volto cara ao ocaso. Pensei que ia faltar-me a respiração de júbilo, de surpresa, de gratidão.
-Que é o que fás, Nisiuti? –berrei-lhe desde a rua.
-Miro! –respondeu o moço, rindo forte e mui confuso por ter-se deixado supreender em aquela atitude ingénua (13)”.

VII

À par da volatilização dos labregos no paisagismo inglês poderia-se colocar o apagado da classe trabalhadora no imaginário cinematográfico, que Slavoj Zizek remonta a Metrópole de Fritz Lang: 
“Mas o elemento crucial desta tradição é a equiparação do trabalho com o crime, ou a ideia de que o trabalho, o trabalho duro, é em orgiem uma atividade indecente e criminal que debe ocultar-se ao olho público. Nos filmes de Hollywood, só assistimos ao processo de produção em toda a sua intensidade quando o herói penetra no secreto dominio criminal e localiza ali o lugar onde se realiza todo o trabalho (o destilado e empacotado das drogas, a construção do míssil que destruirá Nova Iorque…) Quando nos filmes de James Bond o criminal supremo leva o herói dar uma volta pola factoria ilegal, depois de fazê-lo prisioneiro, acaso não estamos o mais perto que pode chegar Hollywood da orgulhosa apresentação socialista-realista da produção industrial? A função de Bond, é claro, consiste precisamente em fazer saltar polo ar este centro de produção, e permitir-nos deste modo voltar à ilusão quotidiana de viver num mundo do que “desapareceu a classe trabalhadora…” (14).

Uma outra interpretação é que haja uma corrente inconsciente de anti-industrialismo em Hollywood, que arranca no labrego que aponta a arma cara o tractor, símbolo do latifundismo capitalista na adaptação de John Ford de As uvas da ira, e passa por Cary Grant intentando fugir, entre o milho, de assassina avioneta-fumigadora (que melhor anticipação de relação entre a fumigação dos cultivos, e o napalm, que gosta de recordar a crítica agrocológica?) Seja como for, em Hollywood os tractores não trabalham, as malhadoras não malham, e as ensiladoras não ensilam: são sempre sofisticados instrumentos de tortura.

VIII

"Recuperarmos a “consciência consuetudinária”, a memoria de gestão democrática dos montes comunais e outros recursos, é a única maneira de construirmos uma nova imaginação política para além da guerra generalizada entre consumidores-cidadãos".

No transcurso dos motins de economia moral das multidões, em especial nas lutas polo preço do grão no s. XIX, Thompson deteta um crescente “simbolismo do sangue” (15). As mulheres que lideravam os protestos erguiam em pêrtegas bolos de pão ensanguentados e corações de bezerros. A força simbólica do vermelho ainda não se domesticara em bandeiras. Apenas um século depois, a cor já funcionava como identificador político. A propósito de Alemanha de pré-guerra, E. Xammar sinala que “uma camisa de determinada cor equivale, por assim dizê-lo, a todo um programa” (16). Com o franquismo o vermelho estigmatiza-se, e colaboracionista com um de Vila Velha (Ribadeu) chegam a acusar as suas vizinhas de lavar no rio mantas que, “por su color”, bem podiam ter sido utilizadas polos milicianos; ou de estarem em posse “de algunas prendas de vestir y objetos rojos”. Abundam os casos de militantes obreiros obrigados, a ponta de pistola, a comerem as suas gravatas vermelhas. Hoje são os emblemas dos banqueiros do Santander SCH…

IX

Um dos ensaios do Costumes em comum, “A venda de esposas” (17) analisa um ritual de divórcio que se praticava nas feiras inglesas, para escárnio dos estrangeiros, que censuravam tão bárbaro costume. Thompson demonstra como a venda de esposas, levadas à feira igual que um animal, era o costume que uma sociedade machista ideou para posibilitar os divórcios que a Igreja proibia. Podia mui bem tratar-se, em ocasiões, duma mulher que farta de aguentar o esposo se quigera separar, mas a dominação masculina exigia uma portagem simbólica: fosse quem for a parte que incumpria com as obrigas maritais, era sempre a mulher a que tinha que passar a humilhação de ser vendida como uma besta. O machismo, como a banca, sempre ganhava.

Porém, o que interessa aqui é o simbolismo do ritual: o “comprador” (que de facto já era o amante da mulher) remata a transação levando a mulher polo adibal com o que o marido a trouxera ao mercado, atada polo pescoço; ou bem calça os sapatos do primeiro marido (18). Thompson passa por alto um simbolismo que não lhe escaparía a nenhum labrego galego: o “calçado” é a metáfora dos genitais femininos, e o “calçar” da possessão sexual. Com este significado há várias adivinhas (“De riba de ti estou,/ debaixo de mim te tenho,/ bem pouca sorte é a minha/ se nom che meto o que tenho” (19)) e dúzias de cantigas como esta:

O sapato quer a média
a média quer o sapato,
também a guapa meninha
quer um rapazinho guapo (20).

A crença de que a moça à que lhe barram os sapatos não casará, é um recordatorio da importância de virgindade (representada, em versão culta, no sapato de cristal do conto da Cinzenta). Da mesma maneira, pisar o pé era uma forma de solicitude amorosa:

Non poñas o pé no meu
nin a man no meu pescozo,
que esta miña morenura,
non é para ti, garboso. (21).

Non poñas o pé no meu
nin a saia na miña saia,
que anque son moza solteira
espero de ser casada. (22).
Ainda, o jogo da sapatilha, que se fazia em velatorios e moinhadas, deixaria a Thompson sem dúvidas de por que o novo marido calçava os sapatos do primeiro:
“O xogar da zapatilla consiste en que uns cantos rapaces e rapazas, bueno, homes e mulleres (que nunca os homes fan as festas solos nin as mulleres tampouco); entón fan unha roda, colócanse sentados, coas cachas pousadas no chan e as pernas dobladas para que, por debaixo se poida pasar a zapatilla. O que se trata é de que todos disimulen para que o que esté castigado no medio da roda non poida saber por ónde está pasando a zapatilla. O chiste está en que o do medio non poida coller a zapatilla. Cando o castigado era un mozo sempre procuraba esperar a que a zapatilla estivese en poder dunha muller para collela. Daquela as mulleres non usaban pantalón e entón el aproveitaba para mirar o que levaban por abaixo, e, si podía, aljo mais”. (23).

X

Após a catástrofe do Prestige, com uma forte indignação que apenas se viu reflectida nas urnas, o antropólogo analisava o sucedido em base a um tipo ideal polar, no que comparava as duas principais cosmovisões que convivem na Galiza: a “cultura ilustrada” e a “cultura pré-democrática” (24). Enquanto a Galiza ilustrada dos empresarios do mexilhão ou da piscicultura ajudariam ativamente nas tarefas de limpeza do fuel, pois “onde a cultura empresarial e o mundo urbano estão mais perto, existia outra responsabilidade”, sobre o bem comum, os marinheiros da “cultura pré-democrática” ficariam no bar sem se corresponsabilizar. Para eles regeria a “tragedia dos comuns”: “Quem trabalha para o comum não trabalha para nenhum”, “O que é de todos não é de ninguém”, “Se quigeres que algo dure, há-de ser um só quem o ature”, “Cada cão que lamba o seu caralho”… Isto, junto com uma moralidade mais restrita do que a ilustrada, e uma conceção do Estado como mero instrumento de exploração ao que não cabe exigir responsabilidades, pois a sua natureza é opressora, dariam nesses surpreendentes resultados eleitorais.
Gondar rompe com a habitual numerología eleitoral, e analisa conforme o ditado spinoziano de “não burlar-se, não chorar, senão compreender”, mas a perspetiva antropológica vê-se fanada por asumir o paradigma historiográfico liberal, conforme o qual a democracia só surgiría com o Estado moderno, obviando as práticas democráticas consuetudinárias. Aliás os ditos citados para exemplificar o “individualismo” da Galiza tradicional, englobam-se, porém, num outro tirado do refraneiro neoliberal: o da “tragedia dos comuns”. Com essa noção Garret Hardin pretendía demonstrar que os comunais estavam abocados ao fracasso porque, universalizando o homo oeconomicus, todo o mundo intentaria aproveitar-se deles até esquilmá-los (25). A teoria de Hardin aginhas passaria a servir de ariete teórico para as novas vagas mundiais de acumulações por despossessão, pasando a fazer parte do novo sentido comum capitalista. A tragedia dos comuns está tras os argumentos a favor da privatização da biodiversidade genética, da água, da produção cultural, etc… Thompson vê nela um eco dos propagandistas dos cercamentos, que em combinação com um certo malghusianismo, fam da “tragedia dos comuns” uma teoria “ignorante históricamente” (26). Recuperarmos a “consciência consuetudinária”, a memoria de gestão democrática dos montes comunais e outros recursos, é a única maneira de construirmos uma nova imaginação política para além da guerra generalizada entre consumidores-cidadãos.

NOTAS

1. E. P. Thompson, Costumbres en común, Barcelona, Crítica, 1995 (1991).
2. Ibidem, p. 28.
3. Owen Jones, Chavs. The Demonization of the Working Class, 2011.
4. F. Jameson, “Actually Existing Marxism”, em S. Makdisis, C. Casarino e R. Karl (comps.), Marx Beyons Marxism, Londres, Routledge, 1996, pp. 14-54, p. 43.
5. C. Fernández Liria e S. Alba Rico, El naufragio del hombre, Hondarribia, Hiru. A mentalidade que engendrou essa carreira modernizadora espalha-a à perfeição o comentario de Stalin à segunda parte do filme Ivan o terrível de Eisenstein: “Podedes parentá-lo como uma personagem cruel. Mas devedés demonstrar por que necessita ser cruel”.
6. Thompson, op. cit., p. 209 (em espanhol e inglês).
7. Ibidem, p. 209.
8. Ibidem, p. 148.
9. Ibidem, p. 148 n. 80.
10. “Destruyendo absurdos mayúsculos”, Patria galega. Voceiro da Galiza lídima, janeiro-março de 1948. O artigo, sem assinar, provavelmente seja da autoria de Fuco G. Gómez.
11. J. Barrell, The dark side of he landscape, Cambridge, 1980. Também Raymond Williams, “Plaisantes perspectivas”, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 17 (1): 29-36, 1977
12. Thompson, op. cit., p. 60.
13. P.P.Pasolini, Amado mío, Barcelona, Seix Barral, 1990, pp. 110-112.
14. S. Zizek, Lacrimae rerum, Barcelona, Debate, 2006, pp. 108-9
15. Thompson, op. cit., pp. 291-292 e 375.
16. Citado em A. Cabana, La derrota de lo épico, Valência, Universitat de Valência, 2013. Também os seguintes exemplos são tirados das pp. 249-250.
17. Thompson, op. cit., pp. 453-519.
18. Ibidem, p. 477.
19. P. Martín, ¿Que cousa é cousa? Vigo, Xerais, 1985, nº 314, e também 390 e 774. Com idéntico significado estoutra bretoa: “A mulher arremanga a saia,/ o homem venha a empurrar,/ e ela que se laia:/ -Está-me você a mancar/ -Cale, que está dentro já”. P. Camby, Contos pilleirentos bretóns (1), Nóia, Toxosoutos, 1999, p. 118.
20. Várias em X. R. Mariño Ferro, O sexo na poesía popular, Vigo, Ir Indo, 1985.
21. Fraguas, p. 74 nº 597
22. Lorenzo, p. 111, nº 1527
23. M. Gondar, “Xogando coa morte: unha ollada antropolóxica aos xogos e falcatruadas de velatorio na Galicia tradicional”, Grial, nº 79, pp. 53-63, 1983, p. 54.
24. M. Gondar, “Prestige e Política (O pré-democrático como paradigma)”, Novas da Galiza, nº 8, julo de 2003.
25. G. Hardin, “The tragedy of the commons”, Science nº 162, 1968, pp. 1343-1348
26. Thompson, op. cit., pp. 127 e 129 n. 29.

Comentarios