Opinión

Etnografias da democracia paroquial

Para Pedro García Olivo, a existência de uma matéria escolar chamada “educação para a democracia” evidencia “a triste circunstância de que o nosso modelo político, indireto e representativo, não educa por si mesmo, corroborando que a democracia liberal não é educativa. Nos povos índios, polo contrário, a organização democrática tradicional, o sistema de cargos, atuava como agente da educação comunitária: formava, socializava, moralizava, culturizava” (1). Sucederia o mesmo com a democracia tradicional –concelhia- galega? Na etnografia de Vicente Risco (2) aparece o caso dos moços –seria um costume exclusivamente masculino- da zona de Ourense, que se organizavam em “sociedades” que remedavam os concelhos abertos dos adultos, reunindo-se nos mesmos lugares (a encruzilhada, a árvore, o forno comunal…) e dando aos seus responsáveis os nomes próprios das autoridades locais, “mordomo” e “vigairo”. Estes jovens implicavam-se especialmente na defesa dos comunais da paróquia, nos ritos de afirmação perante as paróquias vizinhas, e na organização das festas.

1.-Pedro García Olivo, Dulce Leviatán. Críticos, víctimas y antagonistas del Estado de Bienestar, Bardo Ediciones, 2014, p. 173.

2.-Vicente Risco, “Etnografía. Cultura espiritual”, in Ramón Otero Pedrayo (dir.), Historia de Galiza, t. 1., Buenos Aires, Editorial Nós, 1962, p. 531-532.

A RUTURA DA UNANIMIDADE

Conforme o paradigma historiográfico liberal a “democracia” seria algo trazido polo Estado às nossas paróquias e bairros ao longo do século XIX, submidos até então numa existência pré-democrática. É o mesmo paradigma que, confundindo o “público” com o “estatal”, nos descreve uma realidade ferozmente individualista, do todos contra todos, em vez de uma civilização rural –conforme a formosa expressão de Julia Varela- onde a maior parte do território se geria em propriedade comunal, sendo assim que falam de um supostamente progressista “desamortização” que, porém, foi sobretudo um brutal processo de descomunalização.

A hegemonia deste paradigma liberal vem funcionando como um obstáculo epistemológico que impede investigar a democracia concelhia. Nas eleições do verão de 1837 por volta de 2,9% da população galega, todos eles homens abastados, exercerom o direito a voto para escolher 29 representantes; mas esta “democracia” oculta que meio século antes ainda havia, segundo o Censo de Floridablanca, 53 paróquias galegas em regime de democracia autogestionária (“de senhorio próprio dos seus vizinhos”).

Nos seus cursos do Collège de France Pierre Bourdieu invitava a investigar os conflitos que ocasionou na França a implantação da democracia estatal da Revolução Francesa, ao colisionar no nível local com as práticas democráticas tradicionais, como sucedeu com o forte rechaço que provocou em muitos lugares a passagem de uma democracia que funcionava por unanimidade a outra de maiorias (1). Para o antropólogo David Graeber “(a) tomada de decissões por consenso é característica de sociedades nas quais seria mui difícil obrigar uma minoria a aceitar a decissão maioritária, já seja porque não há um Estado com o monopólio efetivo da força”, já porque “recorrer a votar é absurdo, é evidenciar uma derrota, gerar ressentimentos e destruir a comunidade (2)” (pense-se na tradição carrillista de zanjar os debates no PC forçando votações). Num esboço da genealogia da democracia de maiorias em substituição dos procedimentos consensuais, Graeber aponta a origens militaristas (3).

Nas democracias de pequenas comunidades a consciência da interdependencia dá num grande cuidado da união, um fim em si mesmo tanto ou mais importante que a decissão em questão que se vaia tomar. É mui revelador o facto de que com o agrarismo, quando o parlamento paroquial passou do adro da igreja às sociedades agrárias, como apontou Castelao, muitas paróquias se afiliassem em bloco a uma sociedade de uma tendencia ou outra (católica, anarquista, socialista, etc.), presionando fortemente –mesmo chegando ao boicote- as casas que preferiam não participar. É, talvez, um exemplo do que Félix Patzi chama “autoritarismo baseado no consenso” (4) que, ao preço de reduzir a liberdade pessoal, mantinha a comunidade unida “sem partidos”. Os procedimentos polos quais se construiam estes consensos abranguem um grande leque que há que estudar, indo das opções mais autoritárias às mais maravilhosas tecnologías sociais de integração dos dissidentes; como as descritas por Carlos Lenkersdorf numa assembleia tojolabal onde o grupo tomava o tempo necessário –horas, dias, semanas,…- em convencer realmente as pessoas que se mostravam contrárias à decissão da maioria, embora houvesse um só contrário, de forma que absolutamente ninguém se sentisse perdedor ao rematar o processo deliberativo (5).

Esta é, em definitiva, uma investigação que debe começar no imediato nos ámbitos mais próximos em que exercemos a democracia: na casa, no sindicato, na assembleia do centro social…

1.-Pierre Bourdieu, Sobre el Estado. Cursos en el Collège de France (1989-1992), Barcelona, Anagrama, 2014, p. 145.

2.-David Graeber, Fragmentos de antropología anarquista, Barcelona, Virus, 2011, p. 99-100.

3.-Ibidem, p. 96 e ss.

4.-Félix Patzi, Sistema comunal, una propuesta alternativa al sistema liberal, La Paz, CEA, 2004, p. 177.

5.-Carlos Lenkersdorf, Filosofar en clave tojolabal, México, Maporrua, 2005, p. 73 e ss.

IGREJA E CONCELHO ABERTO

Ao estudar a Galiza tradicional há que cuidar-se de não confundir o cristianismo com a instituição autoritária (supra e superestatal) da Igreja, pois correríamos o risco, como advertiu G.K. Chesterton –esse prodigioso conservador de esquerdas- de, “chegada a ocasião”, não pensar nos camponeses “nem na religião popular e todas as demais cousas radicais” (1). As igrejas, como centro vital da paróquia –parece um tanto anacrónico falar então de uma esfera “social” e outra “religiosa” tão separadas-, foi um espaço estratégico objeto de uma luta constante pola sua apropriação entre a Igreja e a comunidade: quem tinha o adro tinha o centro de representação da paróquia, o lugar legítimo desde o que elaborar o discurso legítimo que re-presentava a comunidade.

Antonio López Ferreiro, no seu romance histórico O Castelo de Pambre, descreve o recinto da igreja paroquial como a sede política do concelho aberto, sem que o poder eclesiástico o pudesse evitar ainda:

“(…) Mais entonces (a ocasião decorre em 1378) non era cousa tan nunca vista que a airexa fose sitio en que se fixesen xuntas comunales, se ventilasen asuntos civiis, se notificasen cartas e sentencias e se celebrasen outros púbricos de carauter segrar. Inda por moito tempo o adro das eirexas era o lugar propio e sinalado aos concellos e xuntas populares. É certo que os Concilios e os Perlados cramaban contra o abuso de celebráranse nas eirexas taes outos; mais á veces, co gallo de que era por necesidá e pol’o ben común, non se reparaba nas ditas prohibicións” (2).

Para o caso das pequenas ermidas comunais de Biscais, o etnógrafo Arregi Azpeita descreve uns espaços que iam mui além de meros templos religiosos: tinham lugares de reunião, um pórtico coberto (eleizpe) para os dias de chuva, uma mesa de pedra (pielarri) para redigir as atas das juntas, o campo da festa (dantza leku), o campo de jogar aos bolos (bola toki), e mesmo pequenos tourais (3). O declive da democracia concelhia vasca começou quando se passou do concelho aberto, com a participação de toda a comunidade, às juntas de notáveis, que cerravam a ante-igreja para que o povo não escuitasse os debates. Naturalmente, a colaboração da Igreja foi imprescindível.

Historiar este conflito é relativamente fácil pola abundancia de documentação que a própria Igreja foi deixando: eis as exortações a que os cregos não permitam que durante a missa dominical se fale “de cousas do concelho”, intentos de monopolizar o uso do sino –autêntica voz da paróquia- para os asuntos controlados polo sacerdote, privatizações do adro (onde além do concelho também se faziam as escolas de ferrado), proibições –com o pretexto da promiscuidade- de usar a igreja como lugar de dormida nas romagens de festas, etc. A Igreja foi, em definitiva, fazendo-se com o controlo do centro da paróquia, mas não sem oposição por parte da vizinhança. Quando a rutura foi total o povo procurou outros espaços, cindidos já do espaço da religião. Castelao explicou-no no Sempre em Galiza (Livro I, Cap. XXVII): “Compre dizer que desde há bastantes anos, em muitas paróquias juntam-se mais gente nas “Sociedades agrárias” que no adro das igrejas; mas a “paróquia” continua a ser a única célula vital do nosso país, a única entidade natural do povoação camponesa”. Os locais destas sociedades agrárias às vezes erigiam-se enfronte da igreja, em aberto desafio à instituição que pretendía monopolizar o “significante vazio”, o lugar onde se elaborava o comum. Embora houvesse sociedades agrárias ateias, o desafio não debe interpretar-se em chave “religiosa”, mas “política”. Em algum caso excecional, como o espetacular “cisma” de Taragonha de 1971, a comunidade venceu, despejando o poder eclesiástico e comunalizando a igreja, mesmo chegando a autogerir completamente os ritos religiosos. E ainda, em casos como a “comuna de Sésamo” de Moncho Valcarce, foi o crego o que facilitou e impulsou a re-socialização da igreja paroquial.

1.-G.K. Chesterton, Charlas, Buenos Aires, Espasa-Calpe, Coleccións Austral, 1945, p. 107.

2.-Antonio López Ferreiro, O Castelo de Pambre, Diario 16 Galicia, 1992, p. 27.

3.-G. Arregi Azpeitia, “La arquitectura tradicional de las ermitas de Bizkaia”, in: A. Fraguas e X.A. Fidalgo Santamariña, Tecnoloxía tradicional: dimensión patrimonial e valoración antropolóxica. Actas do Simposio Internacional In Memoriam Xaquín Lorenzo (Ourense, 13 ó 15 de outubro de 1995), Conselho de Cultura Galega, 1996, p. 202 e ss.

VINHO E COMENSALIDADE NAS DEMOCRACIAS PAROQUIAIS

A comensalidade –e a embriaguez- servirom como ferramenta convivencial nas democracias paroquiais, sobretudo à hora de engraxar as fricções que ocasionava o consensualismo e à de sancionar as condutas antisociais.

Em Rio de Onor (1) o vinho já de por si um alimento de grande eficácia simbólica em tanto que encarnação da sangue de Cristo, substanciava a comunidade numa alegria festiva. Como uma sorte de moeda, o vinho servia para pagar as multas do conselho (por condutas egoístas como não abrir a porta ao canto de Reis, por não exercer como é devido o cárrego de mordomo, etc.) e os seus impostos (por ter direito de acesso aos pastos comunais, por uma transação económica entre vizinhos, ou aos forateiros por mocear com as solteiras da paróquia). A contabilidade deste peculiar erário público escriturava-se cuidadosamente em talas: um cántaro de vinho apontava-se com um “X”, meio cántaro com um “Y”, um quartilho com um “/” e uma canada com um risco comprido. Excecionalmente podia-se multar alguém em dinheiro metálico, que imediatamente se trocava por uma vitela ou mais vinho. Este tesouro público consumia-se em comum polos homens –só os homens- do conselho com ocasião das reuniões e dos grandes trabalhos comunais, de forma que o vinho –e as viandas- eran um igrediente fundamental no processo de “nossificação” da comunidade, de construção do “Nós”. Durante as assembleias bebiam todos em roda, com grande cuidado ritual, polo vaso ou bassu do conselho. Ao simbolizar a comunidade, os comportamentos anti-comunitários sancionavam-se retirando ao infrator o direito a beber polo bassu, simbolizando igualmente a sua expulsão momentânea. Recuperava o seu direito a fazer parte do conselho pagando a multa de vinho: “u binhu está bebiu que nus faga bom proveito, é de fulanu que pagou por esta ou aquela multa”.

Esta metodologia de manutenção e representação do comum, quiçá não mui saudável, é um exemplo de como se resolviam os conflitos com grande inteligência coletiva, com métodos muito menos agressivos para o indivíduo inadaptado que os implementa o Estado (pense-se no efeito dessocializador do cárcere), reintegrando-o na comunidade, obrigando-o, após o castigo, a beber, comer e divertir-se com os demais. Note-se, aliás, que os castigos não se imponhem em metálico, o qual geraria dessigualdades por mor da acumulabilidade do capital económico, mas em vinho para consumir festivamente, isto é, para transformar mediante alquímia social em comunidade: o Nós formando-se e comendo-se a si próprio.

A Descripción de los estados de la casa de Monterrey en Galicia (2), de P. González de Ulloa, recolhe com escándalo esta prática, mas não para as sanções internas senão as impostas aos vizinhos de outras paróquias que meterom o seu gado sem direito no monte comunal:

“(…) uno de los asuntos en los que suelen ocupar los días festivos estas gentes del bronce, es en multar a su arbitrio los ganados mayores y menores del contorno que pasan fuera de los límites respectivos. Esto se hace por entre semana; deposítase lo que se exige, y en llegado el día festivo el juez pedáneo junta al concejo, vanse a la taberna, y allí (…) llegan los dueños del ganado a desempeñar las prendas que se dieron antes para libertar las reses encorraladas; encuentran a los congregentes como convidados a las bodas de Peritoo, empiezan a trabarse de la lengua y luego de las manos (…)”.

Um rito desqualificado por González de Ulloa como “costoso alboroto” de “corsarios terrestres” que convertem as multas “em embriaguez y borrachera, matándose para esta función castrones, carneros y vacas”. Um proceder, sem dúvida, mais sensato que condenar os vizinhos à miseria multando-os com dinheiro ou privando-os do seu gado, tal e como faria o Estado.

1.-Jorge Dias, Rio de Onor. Comunitarismo agro-pastoril, Lisboa, Presença, 1984, 3º ed.

2.-P. González de Ulloa, Descripción de los estados de la casa de Monterrey en Galicia, prologado e anotado por J. R. Fernández Oxea, Madrid, CSIC, 1950.

O DEUS COMUNAL DA RELIGIOSIDADE POPULAR

Numa das suas cartas de prisão Gramsci afirmava que “deus não é outra cousa que uma metáfora para indicar o conjunto de homens organizados para a ajuda mútua. Émile Durkheim, de quem seguramente beba aquí Gramsci, matizaria que em Deus a sociedade está-se a festejar a si mesma, com as suas contradições incluidas, polo que numa sociedade de classes a religião não será igualitarista. Mas se entendemos a religião como um campo –com desputas sobre a sua definição- em vez de cómo um bloco ou aparelho, talvez nos aproximemos mais à verdade. O campo religioso é objeto de uma incesante desputa pola definição legítima de Deus e a interpretação correta da sua palabra, com agentes que pretendem uma apropriação que favoreza a sua visão da sociedade. Assim, temo suma Igreja que se define, como figera Pio X. como “uma sociedade desigual que inclui duas categorias de pessoas: os pastores e o rabanho”, os primeiros com a missão de gobernar, e “polo que se refere à multidão, não tenhem outro direito senão o de deixar-se guiar e, como rabanho fiel, seguir os seus pastores”; mas também um povo que esgrime Deus como un ideal igualitário e solidário –e mesmo como uma “arma dos débeis”-, totalmente alheio às “cousas dos cregos”, como o que expunha Pedro da Ulfe:

“O viño vén un día de xiada e quéimao todo, non dá nada. Antes había o sulfato, que era xufre, solo pa apoiar, nada mais. I –eso non se acaba, o das drogas i-o dos piensos non se acaba. Antes había un respeto maior pola terra, xa viña de atrás. Hoxe cambiou todo eso, ó non haber a creencia. E sin creencia non hai principios. Home, unha cousa é o cura, e outra a religión, pero algo sabemos que o hai, que hai un ser que nos axuda algo, e que nos manda non facer mal a ninguén” (1).

Se olhamos por esta parte a religiosidade popular galega aparecem formosos exemplares do Deus gramsciano por toda a parte, em ritos que, através da circunvalação divina (2), se celebra a força da comunidade solidária. Eis o porco do Santo Antão que criam em Espasante, as leiras comunais dedicadas ao patrão paroquial cuja colheita se lhe oferta (3), ou as subastas de argaços e greis comunais em honra de uma virgen. Em Cotobade e Terra de Montes tinham um formoso rito para que as crianças que se retrassavam conseguissem começar a falar (é dizer, integrar-se na comunidade). A madrinha colhe o afilhado em braços e mete-lhe os braços num fole, começando dessa guisa uma petição polas aldeias. “Tem que pedir nove esmolas e quando se apresenta a uma porta di:

unha limosna o bode

ven cos pes metidos nun fol

quere falar e non pode.

A madrinha, com o milho que junte ou trigo ou centeio, tem que fazer-lhe nove bolos e o meninho tem que comê-los todos. As esmolas são para São Bernabé aonde levam muitos pequenos para que sejam destros em falar” (4), e que aqui não representa senão a metáfora da ajuda mútua da paróquia.

1.-Julia Varela, A Ulfe. Socioloxía dunha comunidade rural galega, Santiago de Compostela, Sotelo Blanco, 2004, pp. 65-66.

2.-A auto-celebração indireta, através dun santo ou de Deus, pode ter a ver com esse common miscognition, desconhecimento compartilhado, construido conjuntamente, que Bourdieu acha imprescindível para que o dom seja vivido como tal.

3.-Algum exemplo em António Augusto de Rocha Peixoto, “Survivances du regime communautaire en Portugal”, Etnografia Portuguesa, Lisboa, Dom Quixote, 1990 (1908), pp. 330-347.

4. Antón Fraguas y Fraguas, La Galicia Insólita. Tradiciones gallegas, Sada, Ediciós do Castro, 1993, p. 29.

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