Opinión

Espaços para a cultura dissidente

Na sua correpondência carcerária, Antonio Gramsci reflectia sobre a impossibilidade de criar e manter umha moral revolucionária sem dotá-la de bases materiais.

1. Na sua correpondência carcerária, Antonio Gramsci reflectia sobre a impossibilidade de criar e manter umha moral revolucionária sem dotá-la de bases materiais. Para explicá-lo, Gramsci comparava as organizaçons com a Igreja: para esta, “a crença em deus deveria ser para cada homem a fonte de máxima consolaçom e a base inabalável da vida moral, mas parece que a igreja nom confia demasiado nesta inabalabilidade e na firmeza desta consolaçom serena, porque leva os fieis a criarem instituiçons humanas nas que venham com meios humanos no auxílio dos aflitos e lhes impedem duvidar e abalar a sua fé. Parece por consequência que a igreja mesma entende de maneira implícita que deus nom é outra cousa que umha metáfora para indicar o conjunto de homens organizados para a ajuda mútua. Mas se a igreja, organismo espiritualista por excelência, recorre aos meios humanos para manter viva a fé nas forças sobrenaturais, quê deveria dizer-se dos organismos laicos, realistas por excelência, que nom recorrem aos meios humanos para se sosterem?”

"Mas se a igreja, organismo espiritualista por excelência, recorre aos meios humanos para manter viva a fé nas forças sobrenaturais, quê deveria dizer-se dos organismos laicos, realistas por excelência, que nom recorrem aos meios humanos para se sosterem?”

2. Para James C. Scott um dos principais meios humanos para a criaçom dumha cultura disidente som os espaços sociais próprios, zonas de opacidade onde as classes subalternas se resguardem do poder e podam elaborar e transmitir os seus discursos disidentes, dotando-se da suficiente densidade moral para resistir sem resignarem-se. Quanto menos seja o espaço social dumha cultura disidente, mais exposta estará ao poder, e mais contraditório e inestável será o seu discurso subalterno. O que melhor atestaria a teoria de Scott “som os incesantes esforços das elites para abolir ou penetrar esses espaços e os correspondentes esforços dos subordinados para os defender”, até o ponto da luta política ser em boa medida a história destes espaços. Um exemplo brutal desta necessidade quase física, quase fisiológica, dum espaço próprio opaco ao poder, recolhe-o Norman Yetman em Voices from Slavery, compilatório de testemunhas da escravatura no Sul dos EUA: Conta Henry Cheatan, ex –escravo, que “o capataz era um demonio. Nom permitia que ninguém se juntasse em lado nengum. Às vezes esgueirávamo-nos pola encosta abaixo e erguíamos as tinas de lavar de boca para baixo do modo a abafarem o som das nossas vozes e podernos cantar ou rezar ali mesmo”.

3. E.P. Thompson sublinha no The Making of the English Working Class a importância dos espaços próprios na emergência da consciência de classe e articulaçom das heresias revolucionárias: capelinhas afastadas das hierarquias eclessiásticas, tabernas, lares… “Nos locais de culto “sem campanario” havia espaço para a liberdade inteletual e para experiências democráticas livres”. Igualmente, Peter Burke destaca a taberna como espaço de produçom da cultura popular crítica entre os séculos XVI e XVIII; outro historiador, Colin Campbell, mesmo fala da rivalidade entre o pub e a igreja durante o século XIX. Na Galiza, o arcebispo de Santiago ordenava em 1576 que “Los legos que estuvieren en las (…) tabernas, entretanto que se dixere la Missa mayor, o Sermón los Domingos, y dias de guardar: por cada vez, pague un medio real para la Yglesia”. De maneira parecida, na diócese de Mondonhedo, os acordos dos estatutos sinodais de 1534 disponhem que se obrigue os feligreses a guardar a compostura durante a missa, sem “perturbar ni hablar cosa de concejo”. A rivalidade chega à máxima tensom com o agrarismo, tornando-se desafio explícito: muitas sociedades agrárias erguem os seus locais enfronte da igreja paroquial, de modo que o próprio Castelao reconhecia que “desde há bastantes anos, em muitas paróquias juntam-se mais gente nas “sociedades agrárias” que no adro das igrejas”.

4. Também ao lado da igreja, costumava situar-se a taberna concelhil. Esta instituiçom de democracia paroquial passou, no curso do século XVII, a servir para recaudar comunitariamente o dinheiro com o que a paróquia encarava os impostos do Estado de “Alcabalas, Sisas, Servicio de Millones, Utensilios y Servicios Ordinarios”. Segundo recolhe o catastro de Ensenada, na paróquia de Xavestre –na comarca de Ordes- havia quatro tabernas paroquiais que achegavam 348 reais para o pagamento coletivo dos impostos. É de supor que os paisanos nom se juntariam nelas para festejar a eficacia recaudatória dum Estado do que só conheciam espólio e repressom. O ambiente, pola contra, havia de ser como o que descreve Emilia Pardo Bazán, com indissimulado elitismo, no romance Los pazos de Ulloa: “En las tabernas de Cebre, el día de la feria, se oía hablar de libertad de cultos, de derechos individuales, de abolición de quintas, de federación, de plebiscito –pronunciación no garantizada, por supuesto-…”.

"O da que fora sede do Governo Basco em Paris, o número 11 da Avenue Marceau: “reconquistado” o edifício pola Gestapo e os seus sócios espanhóis durante a ocupaçom nazi, foi usado como Embaixada espanhola, e atualmente pertence ao Instituto Cervantes, negando-se o Estado espanhol a devolvê-lo"

5. Após conhecer-se a sentença condenatória do sumário 35/2002, o mal chamado “das herriko tabernas”, o historiador Iñako Egaña publica “Botín de guerra, una historia repetida” (Gara, 10/8/14), um artigo que repassa esta história da luta política polos espaços disidentes. Egaña remonta-se ao decreto 18/1936, com o que o franquismo expropriou milhares de locais e bens das forças políticas democráticas. Um dos casos emblemáticos é o da que fora sede do Governo Basco em Paris, o número 11 da Avenue Marceau: “reconquistado” o edifício pola Gestapo e os seus sócios espanhóis durante a ocupaçom nazi, foi usado como Embaixada espanhola, e atualmente pertence ao Instituto Cervantes, negando-se o Estado espanhol a devolvê-lo. Justamente o processo de devoluçom, em 1986 com Felipe González e 1998 com José María Aznar, fôrom umha nova burla, na que organizaçons como a CNT tivêrom que ver como em nome da memoria histórica o PSOE e a UGT repartiam o pastel. Outro caso polémico é o de ANV-EAE: após recuperarem algumhas das sedes que lhes foram assaltadas, o Tribunal Supremo ordena de novo em 2008 a liquidaçom de bens desta organizaçom vasca, antiga aliada do Partido Galeguista. Desta volta, o Estado espanhol apropria-se de 111 locais da esquerda abertzale.

6. Numha publicaçom arredista da década de 90 afirmava-se, na linguagem da época, que o “tacticismo” do nacionalismo, “utilizando o conceito de táctica proposto por Michel de Certeau, leva-o a umha ausencia de lugar próprio (de espaço próprio, incluído o simbólico), sem umha fronteira que distinga o inimigo como umha totalidade visível, o seu universo é o universo do inimigo e polo tanto debe conformar-se com atuar submetido à pressom e chantagem constantes deste”. Duas ausencias de espaços próprios mui significativos som a da falta dum diário (um espaço simbólico chave), e algumha forma de locais sociais, de convívio para além da “política” onde o discurso subalterno tome forma, por exemplo, por ôsmosse. Na monocultura da “política”, antes do que espaços de segurança criam-se mais espaços de confronto –as lutas assembleares…-, que se sumam como umha nova fricçom a pessoas que já passam o seu dia a dia num ambiente hostil, que impom uns valores antagónicos aos seus. É nessa precariedade “espacial”, e nom em qualquer “erro teórico” ou “falta de consciência”, onde a dissidência encalha numha indignaçom amorfa, que acaba desembocando quer na resignaçom e as paixons tristes, quer no cinismo, hábil combinaçom de covardia e inteligência. No melhor dos casos, vai-se conformando esse ethos que Castelao ridiculizava nos velhos republicanos, que “foron axiña anulados pol-os socialistas e narco-sindicalistas, sen máis misión apreciable que a de promiscuaren nos días de vixilia, pero eles seguían considerándose eisintentes e importantes porque ao seu paso as beatas facían o sino da cruz. Chegaron a ser, simplesmentes, uns representantes do demo. Valente ministerio!”

Na Terra Ancha, 29 de agosto de 2014

Comentarios