Opinión

A conspiração dos corpos críticos

Em abril de 1939 o alcalde de Foz redige uma carta para o Governador civil de Lugo, dando conta da sua negativa a autorizar um baile na paróquia de São Martinho: “(…).


“A conspiração dos corpos. Não dos espíritos
críticos, senão das corporeidades críticas
Tiqqun, Como fazer?

I

Em abril de 1939 o alcalde de Foz redige uma carta para o Governador civil de Lugo, dando conta da sua negativa a autorizar um baile na paróquia de São Martinho: “(…) La afición al baile había aumentado en proporciones exageradas desde los últimos ocho años hasta el extremo de que no solo se bailaba los días festivos sino que también en muchos días laborables, llegando a construirse edificios para tal fin de importancia en todas las parroquias y por partida doble en la mayoría, donde concurrían, además de la gente joven, todos los niños de edad escolar con más puntualidad que a las escuelas y la iglesia, a cuyos deberes se faltaba por completo (…) lo cual fue causa principal de que en España se llegara a la caótica situación del Frente Popular, de la que con providencial protección la liberó nuestro Caudillo (…)” (1).

"Por lo tanto dispongo y hago disponer que en la provincia a mi mando quedan suprimidos los bailes durante la Cuaresma” . Os bailes, enfim, não são para o franquismo". 

“Agora é tempo santo,/ não é tempo de cantar,/ que estão os santos cubertos / com a cara no altar” (2), dizia-se da Quaresma, tempo de recolhimento e abstinencia carnal. Em fevereiro de 1940 o Governo civil da Corunha elevará a cantiga a decreto policial: “(…) continuamente están llegando quejas a este Gobierno Civil de todos los confines de la provincia sobre los bailes. Son muchos los pueblos en los que tienen lugar sin la debida autorización y sabemos, además, que se prolongan hasta avanzadas horas de la noche y que con este motivo se hacen prohibidas libaciones, que degeneran el ambiente en groserías, blasfemias e inmoralidades sin número. Ahora bien, teniendo en cuenta el peligro y la resonancia moral y social de tamañas extralimitaciones, así como la austeridad y buen sentido que a todos nos impone el momento presente de España, aún húmedo con la sangre de tantos mártires y el recuerdo amargo de tantos lutos; y considerando que, a estas alturas, cristianos y patriotas como somos y debemos ser, la Iglesia con su Cuaresma y la Patria con su preocupación por el porvenir, nos invitan al recogimiento y al sacrificio. Por lo tanto dispongo y hago disponer que en la provincia a mi mando quedan suprimidos los bailes durante la Cuaresma” (3). Os bailes, enfim, não são para o franquismo. 

II

“Si somos sinceros; si hemos ido a la guerra a revalorizar el contenido de las ideas RELIGIÓN y PATRIA; si hemos salido de ella por Dios y por España, hay que volver a lo que Dios y España piden; hay que volver a la moral sincera, hay que enlazar las manos con la España que dejamos, como un trasto viejo, arrinconada al margen del camino, hay que dar muerte a lo que nos separó de Dios y de la Patria, hay que barrer la basura que importamos, necios, de otros pueblos de la España salvaje. Hay que desterrar el baile agarrado” (4). Neste discurso de Pontecostés de 1941, Marcelino Olaechea demonstra a instintiva lucidez dos reacionários face os empoderamentos corporais, algo –com a exceção de Emma Goldman- que passava desapercibido à inteletualocentrista esquerda. “No, -prossegue Olaechea- no se volverá España, roja, por prédicas de demagogos, ni por libros y prensa laica o impía… (…) Pero la inmoralidad, sí; y cuando la inmoralidad entra por las puertas, salta la fé por las ventanas. Sobrevivientes de la guerra, daos cuenta de que el diablo rojo viene vestido de verde (…). Alerta, mozos, que podéis ser vencidos por los vendidos de ayer; alerta navarros, que podéis dejar de serlo, dejando vuestra virilidad desgarrada en los zarzales de las malas costumbres: la revista inmoral (¡y algunas corren!): el cine procaz: el baile agarrado” (5). Olaechea não se preocupava polas consciencias críticas e a sua letra impresa; aterrorizava-se polos corpos livres.

III

“Um afeto, em quanto referido à alma,
não pode ser reprimido sem suprimido 
senão por meio da ideia de uma afeção do
corpo contrária à afeção que padecemos, e
mais forte do que ela”.
Spinoza, Ethica

Pierre Bourdieu insistirá uma e outra vez em que a submissão imediata que consegue a ordem estata não obedece a causas do nível da consciência, senão das disposições corporais. A ideia do corpo como campo de batalha política, uma evidencia para as feministas, não foi nem imaginada pola esquerda. O próprio marxismo, com a sua filosofia da tomada da consciência, permanece numa visão inteletualista da dominação, situando na “falsa consciência” o que está nas obediencias mudas do corpo (6). Entendeu-no bem, porém, o poder. Especialmente o poder religioso que, antes de Pascal, já sabia que as dispossições da alma cristã se configuram obrigando o corpo a ajeolhar-se cinco vezes ao dia para rezar. Cilícios, jejuns, suplícios, abstinências… A Igreja, instituição espiritualista por excelência, desenvolveu toda uma panoplia de ténicas corporais: eis o corpo, acesso privilegiado à alma. A ortopedia da alma começa no corpo. As paixões do habitus dominado, “relação social somatizada, lei do corpo social convertida em lei do corpo, não são das que possam suspender-se mediante um mero esforço de vontade, baseado numa tomada de consciência libertadora” (7), o poder, voltando a Olaechea, não teme tanto as prédicas e os libros como os inteletuais pensam. Nessa fé inteletualista na “tomada de consciência” e na desconsideração das relações de poder que atravessam o corpo, “estriba, assim mesmo, a vaidade das tomadas de posição religiosas, éticas ou políticas que consistem em aguardar uma verdadeira transformação das relações de dominação (…) de uma mera “conversão dos espíritos” (dos dominantes ou dos dominados), fruto da predicação racional e a educação ou, como às vezes pensam de forma ilusa os Mestres, de uma ampla logoterapia coletiva cuja organização corresponderia aos inteletuais” (8). Por isso Bourdieu fala do “contra-adestramento” como único modo de construir habitus libertados.

"Métodos tão distintos entre si como a “mística” da violência revolucionária de Franz Fanon ou a desobediência pacífica de Gandhi partilham, porém, essa conceção inteletualista da política e sublinham a transformação subjetiva na ação"

Métodos tão distintos entre si como a “mística” da violência revolucionária de Franz Fanon ou a desobediência pacífica de Gandhi partilham, porém, essa conceção inteletualista da política e sublinham a transformação subjetiva na ação. Poder-se-ia fazer uma história corporal dos movimentos políticos: os desportos gaélicos no republicanismo irlandés, o montanhismo e os clubes gastronómicos no nacionalismo basco, a revolta chinesa dos boxes, as danças dos espíritos da resistência sioux… E chegariamos a um nacionalismo galego moderno (não tanto o de pré-guerra, com as suas danças, futebol e excursões) dominado por uma espécie de inconsciente profesoral. Numa tradição política que conjuga o culturalismo galeguista com a filofofia da consciência marxista, o corpo apaga-se em sinal de distinção inteletual. Poda-se falar ou não de toda uma hexis corporal galeguista, o certo é que apenas surgiram práticas e teorizações de modos de libertação para além de distintos tipos de “logoterápia” (da libresca clássica às modernas de criação de espaços auto-geridos e desmercantalizados onde ensaiar novas relações sociais e onde –como sinalou Celso Á. Cáccamo- se transmite a língua por ôsmosse; a desobediência e transgressão quotidiana do movimiento juvenil ou do okupa; e, naturalmente, a longa luta feminista, que sempre soubo que o corpo é uma ferramenta de transformação social.

IV

“Pode que non sexa tan intelixente coma
ti, nin vaia tan ben vestida, nin teña
palabras tan bonitas, mais o meu corpo
sabe. O meu corpo sabe e iso
abonda”.
Marcos Abalde, Xudite

“E finou tendo razón nas verbas como
a tiña decote nas carnes do seu
corpo”.
Eduardo Blanco-Amor, A esmorga

Numa outra reformulação da mesma tese, Bourdieu sostén que “a pedagogía desportiva é quiçá o terreno por excelência para plantejar o problema que se planteja polo geral no terreno da política: o problema da tomada de consciência. Há uma maneira de compreender completamente particular, amiude esquecida nas teorias da inteligência, a que consiste em compreender com o corpo, mais do que com a consciência, sem ter as palavras para dize-lo” (9).

A bicicleta “fez mais pola emancipação da mulher do que todos os esforços do movimiento feminista juntos”, dissera com entusiasmo a austríaca Rosa Mayreder. A começos do s. XX a bicicleta é percebida polas feministas como um instrumento de libertação, mesmo como um símbolo do “terceiro sexo”, próximo do lesbianismo. As ciclistas ganhavam muita mobilidade e autonomia, e mesmo o direito a vestirem uma roupa, o cullote, que dava muita mais liberdade do que as pesadas saias (10). Por sua parte, Spurlock e Magistro, no seu estudo sobre a cultura emocional das norteamericanas da mesma época (11), destacam o processo de recuperação do corpo que enceteram as moças de classe média através de novas práticas ligadas ao desporto, à música –“A música devolve-nos o corpo” (12)- e co dating (combinar com a parelha mas para ir dançar ou passear), supuseram, uma certa tomada de consciência e de empoderamento através do corpo.

"Se na Galiza a espanholização costuma começar polas mulheres é porque, condenadas a ser sobretudo valorizadas polas suas capacidades simbólicas, investem mais na adquisição de competências simbólicas legítimas: imagen pessoal, ajuste aos cânones de beleza, porte do corpo… e também a língua". 

Num texto memorável, Simone de Beauvoir compara o encolhimento corporal das mulheres, dos pretos dos estados sulistas dos EUA, e dos franceses sob a ocupação nazi: “o universo tem um aspeto completamente diferente para o joven que tem permitido dar um testimónio imperoso de si mesmo e para a moça que vê privados os seus sentimentos de eficacia imediata; um questiona o mundo sem cessar, pode, em cada instante, rebelar-se contra os factos e tem a impresão quando os aceita de confirmar-se ativamente; a outra limita-se a suportá-los; o mundo define-se sem ela e tem uma imagen imutável. Esta impotência física traduz-se por uma timidez mais generalizada: não acredita numa força que não tem experimentado no seu corpo; não se atreve a tomar a iniciativa, rebelar-se, inventar: condenada à docilidade, à resignação, só pode aceitar na sociedade um lugar preparado de antemão (…) Não ter confiança no próprio corpo é perder a confiança em si mesmo” (13). É assim que a libertação sempre redunda numa libertação física –que sublinha Balchtin a propósito do Carnaval- mui expressiva, da exuberancia das danças dos escravos longe dos brancos, à transformação alegre da crianças ao sair para o recreio (14).

V

A escala republicana francesa, desenhada durante a Revolução como instrumento de transformação radical das camadas populares, e aplicada na Terceira Republica, foi uma apisonadora linguística. Não foi casualidade, acha Bourdieu (15), que tal sistema escolar se organizasse impondo, à vez, uma relação com a língua fundamentada na abolição de todos os idiomas menos o francés, e uma relação com o corpo estrita através de disciplinas de higiene, sobriedade, etc. Uma vez construido um mercado unificado de bens simbólicos, a língua legítima (o francés, o espanhol, mas também o registro ‘culto’ de cada língua) não precisa já impor-se por coerção: inculca-se através de uma relação com o mercado que constitui a sua forma incorporada. Espanholiza-se sem ter que passar polo discurso e a consciência; quando se diz que “el gallego suena bruto” não se apõe um modelo linguístico: condena-se uma natureza, um corpo. Mas Labov, ao estudar os comportamentos linguísticos das classes populares de Nova Iorque (16), repara em que os homens se resistem mais do que as mulheres a aceitarem a língua legítima. A sua conceção da masculinidade, a valorização da virilidade, leva-os a rejeitar uma fala que é também uma hexis corporal, uma maneira de usar a boca e a gorja que rejeitam.

Se na Galiza a espanholização costuma começar polas mulheres é porque, condenadas a ser sobretudo valorizadas polas suas capacidades simbólicas, investem mais na adquisição de competências simbólicas legítimas: imagen pessoal, ajuste aos cânones de beleza, porte do corpo… e também a língua. Este trabalho de ajuste simbólico, é apresentado como inherente ao seu género. Porém, nos homens, falar espanhol, falar “fino” (=afeminado), “é em alguma maneira renegar duplamente da sua virilidade, posto que o facto mesmo da adquisição exige docilidade, disposição imposta à mulher pola divisão sexual do trabalho (e pola divisão do trabalho sexual), e posto que essa docilidade inclina a disposições percebidas também como afeminadas” (17). Como construir, então, técnicas corporais da resistência linguística que não passem polo patriarcado? Quiçá o “Correlíngua” seja um exemplo. Contudo, parece evidente que o empoderamento das mulheres é também uma excelente maneira de recuperar o galego.

VI

Ninguém teme já o baile agarrado (embora haja um crescente racismo de esquerda face às novas danças da periferia latinoamericana e africana). A história do baile é também a da sua carga política: “Com o jerk e o disco dança-se em solitario, eventualmente sem parelha. Ao rito social sucedeu-no um rito de parelha, depois um rito do corpo individual. O domínio dos usos, a harmonia com o companheiro, a celebração do corpo: a dança conheceu três etapas sucessivas” (18). A condição para a libertação do corpo dançante é a liberalização: uma dança livre mas individual, individualidades juxtapostas mas não em comum, como nesses pubs modernos em que a cada cliente dão uns auriculares para que escuite uma música pessoalizada. Passou-se de um modo de dominização corporal autoritário a outro liberal; ja não é a disciplina da que falava Foucault, senão uma sorte de liberalismo o que agora funciona como “procedimento técnico unitário polo qual a força do corpo está com o menor gasto reduzida como força “política”, e maximizada como força útil” (19). Apenas há que pensar num dos fenómenos mais interesantes da atual crise: a enorme cifra de parados –e aquí o masculino está justificado- que intensificam o treinamento no ginásio, um novo culto ao corpo que concide com uma insólita pax operária. Minimização de força política do corpo e maximização de força mercantil, como mercadoria de si. A nova revolta dos boxes vem, porém, das necesidades dos corpos dependentes, corpos lactantes, doentes, idosos, necessitados de cuidados. Aí é onde se está a construir, numa revolução cada vez menos silenciosa, o nosso corpo político, o multitudo de Spinoza.

Na Terra Ancha, 25 de novembro de 2014 

NOTAS:

1. Arquivo Municipal de Foz, Correspondência. Cit. Em. Ana Cabana, La derrota de lo épico, Valência, Universitat de Valência, 2013, p. 251.
2. A. Fraguas, “Máscaras e sermones de Carnaval en Cotobade”, Revista de Dialectología y Tradiciones Populares, 1946, p. 440.
3. M. Pazos Gómez, Despois da guerra, Ordes, A. C. Obradoiro da História, 2003, p. 91.
4. Marcelino Olaechea, “Carta pastoral. Fiesta de Pentecostés”. Boletín Oficial del Obispado de Pamplona, 15 de junho de 1941. Cit. Em J.M. Satrústegi, Comportamiento sexual de los vascos, São Sebastião, Txertoa, 1981, pp. 177-191.
5. Ibidem.
6. P. Bourdieu, Razones prácticas, Barcelona, Anagrama, 1997, p. 118.
7. P. Bourdieu, Meditaciones pascalianas, Barcelona, Anagrama, 1994, p. 236.
8. Ibidem.
9. P. Bourdieu, Cosas dichas, Buenos Aires, Gedisa, 1988, p. 182.
10. L. Murat, Le loi du genre. Un histoire culturelle du “troisième sexe”, Paris, Fayard, 2006, pp. 355-364.
11. J.C.Spurlock e C.A.Magistro, New and Improved. The Transformation of American Women’s Emotional Culture, Nova Iorque/Londres, New York University Press, 1998.
12. M.L. Esteban, Crítica del pensamiento amoroso, Barcelona, Edicions Bellaterra, 2011, p. 91.
13. Simone de Beauvoir, Le deuxième sexe. II. L’expérience vécue, Paris, Gallimard, 1949, I parte, Cap. II.
14. James C. Scott, A dominação e a arte de resistência, Lisboa, Letra Livre, 2013, p. 177, n. 26.
15. P. Bourdieu, “El habitus lingüístico y la hexis corporal”, “¿Qué significa hablar?”, Madrid, Akal, 2001, pp. 55-62.
16. W. Labov, Language in the Inner City, Filadelfia, University of Pennsylvania Press.
17. P. Bourdieu, op. cit., p. 62.
18. A. Prost, “Fronteras y espacios de lo privado”, P. Ariès e G. Duby (dirs). Historia de la vida privada. 9. La vida privada en el siglo XX, Madrid, Taurus, 1991, p. 103.
19. M. Foucault, Vigilar y castigar, Madrid, Siglo XXI, 1994, p. 224.

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