Opinión

Carta aberta a Margaret Thatcher

Adeus Margaret Thatcher, você, ainda que não acreditasse, foi uma revolucionária

Dear Magie:

Vem você de deixar o mundo dos vivos, e claro, não vai poder ler esta carta, mas não por isso vou deixar de lhe escrever, já sei que nos seus derradeiros anos as suas faculdades mentais estavam muito mermadas e que tampouco houvesse dado muita atenção a ela, mas é bom lembrar que onde estamos agora, no fim da globalização, e as mudanças que ela gerou, incluída a crise1, foram impulsionadas de início pela sua vontade de ferro, de mudar as cousas com a sua lógica de tendeira.

Adeus Margaret Thatcher, você, ainda que não acreditasse, foi uma revolucionária

Dear Magie:

Vem você de deixar o mundo dos vivos, e claro, não vai poder ler esta carta, mas não por isso vou deixar de lhe escrever, já sei que nos seus derradeiros anos as suas faculdades mentais estavam muito mermadas e que tampouco houvesse dado muita atenção a ela, mas é bom lembrar que onde estamos agora, no fim da globalização, e as mudanças que ela gerou, incluída a crise1, foram impulsionadas de início pela sua vontade de ferro, de mudar as cousas com a sua lógica de tendeira.

Sim, você tinha mentalidade de tendeira, era uma pequeno-burguesa que acreditava que a única fonte de progresso verdadeiro é o pessoal, e que esse só tem uma fonte, o trabalho duro de cada um. E com certeza, para você era absolutamente estúpido que houvesse pessoal que aguarde que lhe resolvam as cousas sem “mexer uma palha”. Você sabia bem que o sucesso só está antes do trabalho no dicionário, que na vida de cada dia, há que trabalhar muito para ter sucesso, ou hipótese de sucesso. Porém, foi lastima não ter debruçado uma olhadela sobre um estudo tão interessante como o feito por este homem Karl Ritter von Frisch, sobre a vida das abelhas e a suas danças, e o papel tão importante que numa sociedade tão trabalhadora como a das abelhas, têm os zangões e também as obreiras que não seguem o padrão que parece marcar a comunidade, de duro trabalho, e andam ao seu bel-prazer, olhe se é interessante o livro, que ao seu autor deram o Nobel de Medicina no ano 73. Ponho-lhe o exemplo das abelhas já que, com a sua mentalidade de tendeira, acho que é dos poucos razoamentos de tentar olhar as cousas dum outro jeito, que poderia achar com interesse.

A Grã-Bretanha em que você nasceu era um império, e que império; era o centro do capitalismo do mundo2. A City ainda o é... mas a cousa já não é a mesma, para isso fez você uma revolução. 

"Os inocentes não perceberam, que com esse campo de jogo, jogar a outro jogo não vai, pois funciona o seu revolucionário imposto, o da rápida descapitalização – deslocalização de capital –, antes chamada fugida dos capitais e considerada delito".

Você chegou ao poder no ano de 1979, havia pouco que o Sr. Nixon, entre palavrões, desregulava um pequeno bocado algumas cousas das finanças e da produção e desligara o Dólar do ouro. O Dólar passara a estar ligado só a uma cousa, o poder industrial, imperial e militar dos EUA. 

Quando você chegou ao poder, a América, o parceiro privilegiado do inglês, era presidido por Jimmy Carter, um presidente ecologista, acho que foi o único que até agora teve de jeito certo essa caraterística, ele que era um produtor de amendoins. Lembrara-se de cousas que fazia e que para você eram asneiras, como a agenda global 2000, onde se falava de questões que para você não faziam sentido, como o limite dos recursos, os problemas do impacto da crescente população e a satisfação das suas necessidades, conforme aos tempos que correm. Lembrará que bom foi que entre os neocons e os khomeinistas, desfizessem a possibilidade de esse homem poder continuar mais quatro anos ao leme. Foi algo muito bom, não acha? 

Chegou à presidência o seu amigo Reagan. Lembra as suas danças com ele?, mesmo parecia você tão feliz como uma mocinha num baile de debutantes. Era um bocado simples, mas para a simplicidade da revolução neocon foi a luva mais adequada. Além disso, o Reagan inundou de dólares de papel o mundo (você também achegou algumas pounds), que todos os demais lhe pagavam (que mágico é o dinheiro quando se soma com poder – de verdade –) para levar a cabo a mais brutal das corridas militares em tempos de paz. Os seus hagiógrafos andam a dizer que isso desfundou a URSS. Eu penso que a URSS estava desfundando-se sozinha, pois estava num beco sem saída em que entrara, uma contradição não prevista pelos teóricos marxistas, entre o desenvolvimento produtivo e as forças de produção que a conduzia a um permanente estado de estagnação, que houvesse sido absolutamente paralisante, se não chegasse a existir a corrida com o sistema mundo capitalista.

Aí estava já tudo posto pra você começar a sua revolução: Pau a esse bando de lacazães operários que se agacham sob o para-chuvas dos Trade Unions. Você não queria nem escutar de sindicatos, esse se ajuntarem pessoas incapazes de resolverem os problemas cada um por si... Onde esteja o duro trabalho individual... fora o da solidariedade essa que lhe chamam de classe, e que você entende ser cousa de preguiceiros. O seu amigo fez o mesmo na outra beira do Atlântico, onde todo, nesse campo, há que dizê-lo, estava muito mais fácil; e à vez acompanharam isso com a redução de impostos aos ricos. Como não, eles são os que criam emprego, n'é Sr. tendeira. 

Os neocons, quer dizer, o pensamento da City e de Wall Street triunfantes, e bem acolhidos nas casas de todo bom tendeiro, rapidamente perceberam que se há algures no mundo onde alguém possa fazer os produtos por um salário no mínimo de sustentabilidade vital, pois porque não aproveitá-lo.

Nascia isso que foi chamado globalização, salvo para os franceses, eles sempre tão esquisitos da outra beira do canal inglês, que eles chamam da Mancha, que usavam mundialização, que eu acho termo menos exato. 

Eis o que era a globalização: Desaparecimento de barreiras alfandegárias aos movimentos de capitais e de produtos. 

Nunca se falou tanto do Organismo internacional do comércio, a OMC e as suas regulações (chamadas rondas, referidas sempre a alguma cidade onde se dava a lotaria dessas reuniões, assinaturas ou acordos) sob o para-chuvas da ONU. Isso, além de significar isso, que era muito, pois revirava-se o casaco que até daquela regia o comércio e os movimentos internacionais de capital, significou a criação duma poderosa alavanca contra quem não seguisse a doutrina, como logo vieram a saber mais de um governo progressista. Os inocentes não perceberam, que com esse campo de jogo, jogar a outro jogo não vai, pois funciona o seu revolucionário imposto, o da rápida descapitalização – deslocalização de capital –, antes chamada fugida dos capitais e considerada delito. A produção agora também se deslocava, e de que jeito, com os seus investimentos. 

Magie isso foi uma revolução, tão revolucionária, em que todos os progressistas do mundo passaram polo olho da agulha, e claro, logo descobriam a nova polícia do sistema, essa de que lhe acabo de falar e desesperavam... e a social-democracia rapidamente adaptada às novas regras, fez o bailado bem balizado na sua eira. Pense que o seu melhor sucessor na Inglaterra foi o Tony Blair. Como dizia o Finacial Times, mais que Tony é Tory, ele é o nosso melhor tory.

A cousa funcionava, os mercados de ações e derivativos financeiros permitiam obter rendas complementares às classes médias, vocês ganhavam eleições; e o mercado começava a inundar-se de produtos a baixo custe que os Walmart de cada lado, com macsalários, punham no mercado. 

Nas metrópoles centrais industrializadas, a desfeita dos sindicatos foi paralela a desfeita da industria, e a transferência da produção (desindustrialização e deslocação), significou uma queda real dos salários industriais (e colaterais), em termos de poder de compra. 

Um desfazer bem desfeito um tradicional movimento operário, a que agora se lhe tiraram os seus peões mais aguerridos. Porém, a miragem dos produtos baratos e o crédito muito fácil, fazia que todos os novos white collars da superpotente terciarização dos estados centrais do sistema, especialmente os dous anglo-saxónicos, andassem contentes3. E os ideólogos da City4 mais que contentes, pois nunca tão central foram ao capitalismo e as suas instituições as entidades financeiras. A produção deixara de ser a rainha.

Vocês impulsionavam a sua revolução, que acabou indo muito mais longe do que nem o mais afamado experto em prospetiva e antecipação pudesse imaginar. A esquerda radical berrava contra vocês e a sua alcateia, mas vocês iam fazer real um sonho que os mais progressistas entre os progressistas ainda que se encham a boca com as palavras, nunca houvessem feito.

Desde que Adam Smith escreveu A Riqueza das Nações, e se debruçou sobre o comércio internacional, pondo o exemplo das trocas comerciais entre a Inglaterra e Portugal, e as vantagens da especialização naquilo que sabiam fazer; a cousa pouco mudou no mundo, ainda que foram muitos os economistas que explicaram muito bem que as trocas com valor acrescido desigual, acrescentam a desigualdade. 

Acho que foi Irineu Evangelista de Sousa, provavelmente o maior economista lusófono5 o primeiro, que sendo discípulo Adam Smith, desmontou a teoria do comércio internacional do mestre, e também desenvolveu a teoria do dinheiro e da moeda, adiantando-se em 100 anos a alguns que viriam a ser reputados prémios Nobel por fazerem isso.

A Globalização pela primeira vez vai significar no planeta, a transferência de tecnologia e produção e capitais dos estados centrais do sistema às suas periferias. 

Não eram já as transferências para procurarem matérias-primas e mercados, era muito mais que isso. A deslocação da produção e a sua exportação aos estados centrais vai significar a acumulação de capital em proporções gigantescas na periferia. Os brics, o crescimento industrial de muitos países não centrais do sistema, não houvesse tido lugar sem a globalização. A globalização ia unida com baixos preços da energia e portanto com muitas facilidades para o transporte a baixo custo de mercadorias. 

Nos estados centrais o balanço eram contínuas exportações de capital para pagarem o que já não produziam, e crescimento do crédito às pessoas para comprarem o que o seu poder de compra real, os seus salários diminuídos não podiam. 

"Vai haver um mundo após globalização, muito distinto do que vocês acharam, e a sua Inglaterra que durante 280 anos foi o centro do capitalismo e das finanças mundiais luta agora por não ser devorada no turbilhão da história e no craque das suas finanças".

Ai está a primeira base do crescimento dos défices públicos e do défice bancário – os buracos bancários –, o crédito desboca-se desligado da produção no espaço central, e tudo acaba parecendo um esquema de Ponzi. Vocês distribuíram a riqueza mundial dum novo jeito. Diminuíram o peso dos estados centrais, criando novos atores poderosos na cena internacional. À china “comunista” vocês converteram-na em firme candidata a ser primeira potência mundial. A sua revolução fez que o futuro vá ser muito diferente do que os neocons imaginavam... que revolução!

A globalização, essa sua revolução, acabou. O mundo está-se dividindo em blocos com interesses muito específicos. Espaços centrais estão ruindo, e o planeta Terra em termos globais converteu-se em mais igualitário, essa palavra que odeia. A tecnologia industrial e a capacidade de criar produtos que se trocavam com muito valor acrescido, já não é monopólio dos velhos poderes centrais, que têm que enfrentar a concorrências que para Adam Smith e outros seriam de pasmar.

Percebe agora a revolução que fez..., das maiores. Vai haver um mundo após globalização, muito distinto do que vocês acharam, e a sua Inglaterra que durante 280 anos foi o centro do capitalismo e das finanças mundiais luta agora por não ser devorada no turbilhão da história e no craque das suas finanças.

Só mais uma cousa final: Ficaria contente com o funeral que lhe fizeram, pois teve você um funeral no seu país reservado aos reis. Ainda que os dinheiros, 9 milhões de libras, foram totalmente estragados, se se olhar com a sua mentalidade de tendeira.

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1.-Ao que se soma a aproximação dos limites nos recursos, que vai ser com as migrações, as grandes questões do século XXI.
2.-Podemos dizer que durante os últimos 280 anos, Londres foi a cabeça do planeta, mas não foi só cousa do bom jeito de inglês fazer, que o foi em grande medida, mas também da capacidade e tolerância inglesa com a diferencia, for ela a que for, e integrar capacidade de trabalho e o saber como, vier de onde quer que for. A banca inglesa foi montada por italianos ainda a rua principal da City é a rua dos Lombardos. Sabia você que os primeiros de religião judaica a instalarem-se na Inglaterra foram pessoas chegadas da Galiza e sobre todo do norte de Portugal, bragançanos muitos deles dedicados nessa velha vila, à seda e à confecção, que o Santo Ofício e a caridade cristã se encarregaram a ferro e lume de destruir, a eles, a industria e o comércio, Ad maiorem Dei gloriam et romanae ecclesiae. La também se instalaram homens das finanças como os Rothschild. O Nathan que no século XVIII encabeçou a saga anglosaxõa desse apelido tão ligado ao império, ele tão pouco era inglês, viera do gueto superpovoado de pessoas e percevejos de Francoforte na Alemanha, e arranjara-se para trazer com ele a fortuna do Príncipe regente de Hesse na Alemanha. 
3.-Os alemães não seguiram os ditados práticos da sua doutrina, e agora podem marcar a linha da construção dum novo poder global, a eurolândia, o espaço alargado sob a égide alemã, e o seu potente deutsche mark chamado agora euro. 
4.-Na Inglaterra os trabalhadores do sector financeiro ligados à city, andam por volta de quatro milhões.
5.-Além de grande economista, foi industrial e banqueiro. Os seus escritos só agora começam a valorizar-se em todo o que eles têm de revolucionário e transformador no campo económico. Para os que gostem de descobrir a importância da sua pessoalidade podem começar com a excelente biografia de Jorge Caldeira http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=10516 

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