Opinión

"Doenças dum espelho"

“Diz-me agora se lembras o teu nome”, inquire-nos a poeta ao pouco de adentrar-nos nas páginas deste livro. O espelho que custódia Medusa no alto da torre confronta-nos com nós mesmas, com a nossa ideia de nós, com a imagem do navegante e a mulher que nom se resigna á espera.

“Diz-me agora se lembras o teu nome”, inquire-nos a poeta ao pouco de adentrar-nos nas páginas deste livro. O espelho que custódia Medusa no alto da torre confronta-nos com nós mesmas, com a nossa ideia de nós, com a imagem do navegante e a mulher que nom se resigna á espera. A luita do navegante, da poeta, é  também a da leitora que se atreve a afundar nas Doenças dum espelho, o poemário de Laura Branco que vêm de tirar do prelo Corsárias Editora. Estruturado nas três fases da metamorfose, é um livro para ler-se por ordem, seguindo a progressom ascendente no sofrimento e na verdade das imagens.

Desde a LARVA ,  que é o abandono, a partida do falso herói ao destino dos navegantes retirados, esse porto de Misno que pudera ser muitos portos marinhaos, sepultados baixo planos urbanísticos aniquiladores. “Misno é o cume que emerge do mar/e nele nasce o navegante nos seus dias derradeiros/e cresce como crescem as figueiras nas dunas de Lhás”.

Na CRISTÁLIDA, a poeta decide enfrentar-se á memoria que lhe infringe tanta dor (“em cada neurónio um martelo”) . A poeta, de facto, abandona-se á derrota por momentos. Mas contra a voz do navegante claudicado ergue-se, por fim, a da mulher que ficou á sua espera, e que decide empreender a busca dentro de si (“Trás as portas da minha imagem guardo no cartafol escuro palavras perdidas e enrugadas”).

Porque “Não é evasão o que procura, mas o reencontro / na luz/ nos olhos /nas palavras”. E a poeta decide então escolher o rumo, um rumo que só obedece “á contínua sucessão de nuvens”.

Chegamos assim ao IMAGO, trás percorrer da mau de seres mitológicos lugares que conformam as nossas paisagens oníricas: as ruínas artúricas de Tintagel, penduradas nos cantis de Cornwall, ou a Torre Martello de Sandycove, onde dá começo outra Odisseia, a imaginada por Joyce entre esses mesmos muros.  Ou os mesmos corvos que acompanham os trajectos do FEVE, pousados nos fios do tendido eléctrico, e que testemunham a viagem da poeta cara ao porto irlandês de Howth. 

Em IMAGO os poemas enchem-se de luz, ainda que evidenciam um espertar á consciência da nada. “Acordei com o céu sob os sapatos”,  com esta imagem dá conta a poeta do seu novo estado. Atravessado o espelho, já não há medo a enfrentar-se ás perguntas.

 “A viagem de partida exige o despojo”, e assim, ligeiras de equipagem, estamos preparadas para embarcar-nos cara Normeraltha, destino mítico que acabamos por devecer intensamente.

Conheci Laura este verão, num lugar mágico como Misno e Normeraltha que se chama Eido Dourado. Ali, numa torre ao pé do Cantábrico, gesta a sua batalha com o espelho o artista Celso Dourado. Sem o saber, Celso estava ilustrando os versos de Laura. Também eu, sem o saber, já tinha percorrido muitas das paisagens deste livro. Também desde as costas de Eire senti mais próxima a Marinha, e consegui ver o que acocham “aquelas ruas de barcos derretidos no cemento”. Também busquei entre a areia das praias os esqueletos de antigos navios. E de certo, topei-nos. Também os corvos marinhos flanqueiam os meus sonhos.  E estou grata com Laura, por traçar esta cartografia de cavalos alados e de viageiros intrépidos, na que tanto gozei de submergir-me. E por fazer-nos perguntas impossíveis de repostar, as mais valiosas.

 “E agora, lembras o teu nome?”