Opinión

O enigma do acomodo geostratégico (e II)

Em recente palestra em The Sanctuary for Independent Media, em Troy, Nova York, o jornalista Chris Hedges calificou a sociedade norte-americana como uma sociedade baseada na simbologia do sadismo: "O sadismo caracteriza quase todas as experiências culturais, sociais e políticas nos Estados Unidos. Expressa-se na ganância desenfreada de uma elite oligárquica que viu a sua riqueza aumentar durante a pandemia em 1.100 milhões de dólares, enquanto o país sofria o maior aumento da sua taxa de pobreza em mais de 50 anos. Expressa-se nas mortes arbitrárias cometidas pela polícia sobre cidadãos desarmados [...]. Expressa-se na separação das crianças de pais sem documentos [...]. Expressa-se na pornificação da sociedade americana, onde mulheres são torturadas, espancadas, degradadas e sexualmente violadas [...]. Expressa-se no sistema predatório de saúde [...]."

Esta visão, que em princípio pode resultar exagero e não avaliável ao total da população norte-americana, não deixa de mostrar uma face da decadência da outra hora potencia guia dos cânones científico, cultural e social do mundo. Assim como dos seus grandes problemas económicos, derivados da lenta agonia do modelo financeiro que sustenta, ainda, a poténcia norte-americana. Problemas económicos derivados da hiperinflação, encuberta pelos estímulos monetários, infra-estruturas em estado de deterioro prolongado, complexo militar industrial demasiado grande para afrontar a nova realidade geopolítica de contracção, a cadeia de suprimento empresarial em dificuldades crescentes, da pobreza em aumento... Tudo isto monstra que o modelo americano de democracia financeira e poder privado corporativo já não é atraente, sendo que no Oriente esse abandono do modelo civilizatório norte-americano é já um fato inquestionável. A ideia duma futura sociedade global tecnotrónica (ideada pelo falecido Zbigniew Brzezinski, assessor dos presidentes Carter e Clinton e promotor da armadilha afegã contra os soviéticos), onde o poder privado das elites mundiais se uniria num modelo ocidental multicultural, de economia capitalista, está já ultrapassada. O capitalismo está em vias de transformação, previa à sua extinção. 

A nova virada em favor duma sociedade mais sustentável ecológica e economicamente também assenta nessa realidade de procura de solução ao fim do modelo predatório actual. A encíclica "Laudatus Si", em favor da nossa casa comum, dá início a esta nova senda verde, na procura dum novo modelo para guiar o mundo. Ainda que não é todo ouro o que brilha sob o sol. O consumo anual de combustível de todas as aero-líneas norte-americanas é de 19 mil milhões de galões ao ano. O consumo de combustível de mineira para a construção de baterias de automóveis eléctricos é de 21 mil milhões de galões anuais. Tendo em conta que com esses 21 milhões de galões queimados apenas se pode construir 250.000 baterias para automóveis eléctricos. Baterias que duram 10 anos e que não são renováveis... Caso fazer a mudança para este tipo de carros, qual sua pegada ecológica verdadeira? 

O Afeganistão tem grandes possibilidades na mineira do lítio e terras raras. Se temos em conta os milhões de dólares gastos na campanha do Afeganistão poderíamos afirmar que para o Poder Privado financeiro a guerra é um bom negócio. O Instituto Internacional de Estudos para a Paz de Estocolmo afirma que de 2002 até 2018 a venda de armas no mundo aumentou em um 47%. 

Faixas de fricção como a Líbia, Síria, Líbano, dentro do famoso pivô de Mackinder, cujas periferias deviam estar controladas, segundo Spkyman, pelo poder Americano para impedir o provável cerco da América pelo poder Euro-asiático, são sem dúvida alarmes globais, centelhas que podem incendiar um fogo mundial. 

Tendo em conta a situação actual preciso seria para todas as partes, em concorrência pela hegemonia global, tentar chegar a um acomodo, momentâneo, que evite a guerra em cerne, por excesso de roçamento nas faixas de fricção mundial. Primeiro, abrir um clima de confiança mútuo através duma tentativa de equidade nas relações comerciais, com maior reciprocidade e fomento da ajuda e mútuo conhecimento entre os povos. Daí que para resolver o enigma deste novo acomodo geoestratégico serão mais precisas pequenas acções concretas, por trás da plateia, que grandiosas palavras dentro do bonito palco. 

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