Opinión

Trabalhos invisíveis

Da realizadora brasileira Anna Muylaert chega-nos este ano “A que horas ela volta?”


Da realizadora brasileira Anna Muylaert chega-nos este ano “A que horas ela volta?”, o filme que está a fazer o Brasil olhar para si próprio. Conta a estória de Val, mulher, trabalhadora, mãe e empregada doméstica na casa de uma família paulista abastada. Val, personagem interpretada por Regina Casé, representa os milhões de nordestinos que imigraram para as grandes metrópoles, deixando para trás a sua própria família para cuidar das casas e dos filhos da gente rica e ocupada. Para além de ser um poderoso e desconcertante retrato social do Brasil, “A que horas ela volta?” poderia ser perfeitamente uma estória angolana.

O filme, cujo guião levou 18 anos a ser concluído, expõe de forma constrangedora, roçando mesmo a sensação de vergonha alheia, o classismo da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, mostra como esse país, tão exuberantemente desigual, está a mudar. Essa transformação social vê-se na diferença de oportunidades entre Val e a sua filha, jovem, crítica, ambiciosa e segura de si.

Essa transformação social vê-se na diferença de oportunidades entre Val e a sua filha, jovem, crítica, ambiciosa e segura de si

O quotidiano da mansão situada no luxuoso bairro do Morumbi é fortemente abalado pela chegada da filha de Val, que vem a São Paulo apresentar-se aos exames de admissão ao curso de Arquitectura. Curiosamente, a própria arquitectura da casa e a distribuição dos espaços tem um valor simbólico enorme no filme e naquela realidade. A ostentação da casa contrasta de forma brutal com o pequeno e abafado quartinho dos fundos onde Val vive há largos anos, suficientes para se encarregar da educação do único filho dos patrões. Com ele desenvolve um vínculo bem mais estreito do que aquele que tem com a própria filha, esta sim, uma relação marcada pela ausência e pela culpa.

Val é “praticamente da família” mas move-se pela casa como um objecto invisível e mudo, sem vida própria, dedicada a servir toda e qualquer necessidade, todo e qualquer capricho, habituada ao olhar distante dos patrões e aos seus gélidos “obrigadas”.

Desde a cozinha, assistimos às suas repetidas viagens à mesa de jantar, ora para retirar os pratos, ora para trazer o cafezinho e o gelado preferido do menino. Através da fotografia e do ângulo da câmara transmite-se a ideia de um espaço recortado, restrito, segregado. Qualquer mistura de águas ou rompimento dessa fronteira é vivido com estranheza pelos dois lados. Cada um deve saber o seu lugar, em especial os empregados.

O filme lembra-nos, caso nos tenhamos esquecido, de que é hora de olhar nos olhos dessas pessoas, mulheres que trabalham uma vida inteira numa casa que não é a sua

“A que horas ela volta?” é um filme que nos remexe por dentro. A subserviência de Val, conformada com o seu papel de cuidadora a ponto de anular a sua própria dignidade, a altivez dos patrões, a infelicidade camuflada das boas famílias, a irreverência e o surgimento de uma nova geração, filha de pais e mães da classe trabalhadora, que graças ao seu trabalho pode hoje ter outros sonhos e ambições, o luxo e a miséria, o sacrifício diário e a recompensa de ver no sucesso da filha o seu sucesso anulado, a tamanha generosidade de Val e o seu crescimento através do contacto com a filha fazem-nos pensar nas formas de organização social do nosso próprio mundo e nos trabalhos invisíveis dessa gente invisível.

O filme lembra-nos, caso nos tenhamos esquecido, de que é hora de olhar nos olhos dessas pessoas, mulheres que trabalham uma vida inteira numa casa que não é a sua, muitas vezes em condições laborais precárias e sem qualquer estrutura, contratos, reformas para a velhice ou segurança social. No Brasil, mas também em Angola, as casas e as empresas estão repletas de trabalhos invisíveis, gente com uma história, pilares familiares, motores vivos que empurram a rotação e translação do mundo, de sol a sol, com os próprios braços. O país são eles e elas. O futuro, esse, será dos seus filhos.

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