As vidas de Xabier Paz

A seguinte conversa é o encontro literario entre dous escritores que son amigos desde hai máis de corenta anos. A publicación de As vidas de Nito (Edicións Xerais) de Xabier Paz é o pretexto para Vítor Vaqueiro afondar con el non só na súa obra, senón tamén na construción do feito literario. Vaqueiro aproveita a ocasión para facer o recoñecemento público de que o pulo de Xabier Paz foi determinante para o inicio da súa traxectoria na escrita. 

Vítor Vaqueiro e Xabier Paz
photo_camera Vítor Vaqueiro e Xabier Paz

É possível que a memória, que sempre nos é infiel, me atraiçoe mais uma vez se digo que conheci Xabier Paz (A Corunha, 1949) um dia indeciso de começos —intuo— do ano 1969, em Compostela, onde empatam as ruas de Rosalia Castro e Rapa da Folha, onde existia uma loja de discos de notável lembrança, na que adquiríamos vinilos de John Coltrane e Hendrix, de Miles Davis, Quilapayum e Zeca e onde se desenvolviam despedidas demoradas. Posso (quero) imagina-lo excessivamente delgado e com uma camisola de raias verticais na que a cor verde era sobranceira. Ali começou um diálogo que ainda se perpetua no presente, quase meio século máis tarde. Devo dizer que a ele, tão serôdio na aparição literária, devo a minha dedicação à escrita, começada por volta dos 15 anos e abandonada algo depois de um ano, se calhar dous, por temor à pesquisa insaciável do meu progenitor masculino, sempre diligente na averiguação das minhas cousas privadas. Foi ele, quando eu confessara esta circunstância numa adega paupérrima da vizinhança da Avenida de Lugo, tirando para O Restolhal, quem me empurrou a recomeçar aquela atividade que já nunca deixei, cousa que devo agradecer-lhe publicamente.

Conversamos sobre o seu último romance, As vidas de Nito (Vigo, Edicións Xerais, 2013), do ponto de vista de quem estas letras escreve o melhor texto narrativo que o autor produziu. É preciso que diga que eu, como Valentín, um dos protagonistas do romance, tenho certo pendor a pensar que quem escreve deve fazê-lo sobre aquilo que conhece de primeira mão, já que, se assim não for, existe o risco de escorregar polo caminho da pesquisa que converte o ato literário num exercício virado, numa grande parte, cara a documentação e o arquivo. 

A norma na que está escrita a presente entrevista é responsabilidade única do entrevistador, recolhendo, porém, com estrita fidelidade o léxico de Xabier Paz que, além do dito, supervisou finalmente o texto.

-Desejaria que definisses, duma maneira breve, o teu percurso literário desde o começo até o dia de hoje. 

Não saberia que dizer da minha carreira além da descrição dos livros já publicados. Nunca escrevi com um planejamento de longo alcanço, escrevo sob o impulso não premeditado. Esse impulso de saber o que me acontece a mim e o que acontece ao meu redor é o motor da minha escrita, de modo que se pode dizer que as minhas obras são uma reflexão, quer poética, quer narrativa, sobre a minha pessoa e sobre a vida em geral.

Que sei  eu. Para sintetizar e, talvez desfocar, diria que uma das minhas preocupações preferenciais estavam, e estão, no enigma da hominização, na formação do ser humano e o surgimento da mente, no funcionamento das sociedades com a persistência da exploração humana, tudo envolvido na consciência de pertencer a uma nação negada. Ou seja, antropologia, filosofia e política, uma mistura que não dei ainda hoje desenleado. Pode soar pedante, mas seria um exercício a meio caminho entre a antropologia, a filosofia e a política. 

-Quando nos conhecemos, por volta de 1968, ti já escrevias. Houve que esperar um longo andamento de mais de trinta anos para que aparecesse a tua primeira obra, Sedimentos. Como explicas esse longo período de silêncio editorial?

Com efeito, quando muitos autores e autoras vêm tão apurados, eu dei à luz meu primeiro livrinho, quase meia centena de poemas, cumpridos os cinquenta anos. No fundo, não acho que o que eu faço seja muito importante e por isso durante anos não tentei publicar. Mas houve circunstâncias concretas que podem explicar o caráter tão tardio dos meus livros. Dous fatores acho que foram determinantes nesse não aparecimento. Por um lado, um externo, a situação sócio-política que me urxía a dedicar corpo e alma à não nata quebra democrática, e outro interno, a insegurança na própria escrita. Não estavam os tempos para pensar na obra própria e não tinha fé suficiente no que fazia. Polo meio, ponhamos os anos de 1985 a 1995, a reciclagem profissional, tese por meio, requereu não poucas energias. 

"Quando muitos autores e autoras vêm tão apurados, eu dei à luz meu primeiro livrinho, quase meia centena de poemas, cumpridos os cinquenta anos". 

-Falando da quebra democrática, vou fazer uma longa consideração. Pode-se dizer que ti e mais eu fomos companheiros de militância, certo que com algumas interrupções, desde o ano 1970. Lembro um dia, haverá uns 20 anos no que numa manifestação, ao passarmos perante a galeria Sargadelos, em Compostela, disseste: “se levássemos um pequeno ficheiro das manifestações às que assistimos, no que figurasse data, motivo da convocatória, condições meteorológicas, número de assistentes, atuação dos corpos repressivos, etc. teríamos um banco de dados de exceção”. Esse seria, digo eu, um labor borgesiano, uma espécie de História Nacional da Vindicação. Certo que, quando ocorre a morte do ditador, ti e mais eu esperávamos um evoluir dos acontecimentos diferente ao que foi e que, essencialmente no PSOE —que não era nada na Galiza de 1975: fala-se de 17 militantes—  se produziu a recepção duma enxurrada de arribistas procedentes do PC e doutras organizações de esquerda que foram ou são hoje alcaides de cidades importantes do país ou mesmo que ocuparam a presidência da Junta de Galiza. Sendo isto assim, a que lhe atribuis a insistência de Nito —que fala desse período histórico como a Desfeita— em refletir sobre a Transição, que se converte para ele numa espécie de obsessão? Pensas que Nito não acaba de assumir o estado de cousas da “democracia” atual? 

Acho que qualquer pessoa leitora encontrará evidente que Nito não está satisfeito com a evolução política e social. Ele não lutou por isso. Depois, a transição foi uma fraude: consumo e amnésia, e em seguida, ou seja, agora, com a crise, nem mesmo consumo. Ele sempre defendeu a quebra Democrática, ou seja, a ruptura com o regime: depuração do aparelho repressivo e do exercito, reparação das vítimas do terrorismo franquista, direitos nacionais, etc. Algo considerado maximalista pelo Partido Comunista e por quase toda a oposição ao franquismo. Cumpria um pacto que foi a transição. Em troca da legalização de partidos e sindicatos e dos estatutos de autonomia, quase café para todos com a invenção de Comunidades Autónomas como Madri, por exemplo, foram lavados todos os crimes do franquismo, todos os crimes dos franquistas .

Nito dize, foi uma fraude. Para ele é uma questão recorrente porque o ativismo político foi a sua vocação, uma maneira de viver durante várias décadas. Além disso, como é uma pessoa idosa, e os velhos são teimosos, todos os dias debulha os mesmos episódios, que são acontecimentos da sua vida.

Na Desfeita também há uma componente íntima, uma vertente para ele mais devastadora: o fracasso de muitos afectos. A terminar, o desencontro com os confrades e amigos, e o subsequente desmoronamento dos afectos, afectou-lhe muito. Para quem nem esperava nem dá explicado, ainda que faça tentativas de racionalização, um fracasso tão fundo na idade adulta tem sequelas. A Desfeita foi para Nito várias coisas .

O percurso literário do que falaste antes, acho eu, vem marcado por uma primeira fase, que abrange de 2001 a 2006, pola poesia —Sedimentos, No canto do mar, Memoria de Lucrecio— para, a seguir, iniciar um caminho narrativo, inaugurado com Folhas do bacalhau (2005) que, embora a sua classificação editorial como crônica é, em realidade, uma obra literária (vejamos, por exemplo, W. G. Sebald ou Claudio Magris) e, de maneira já aberta com Renacer e As vidas de Nito. Pode-se entender, do anterior, um trânsito decidido cara à narrativa?

"Dous fatores acho que foram determinantes nesse não aparecimento. Por um lado, um externo, a situação sócio-política que me urxía a dedicar corpo e alma à não nata quebra democrática, e outro interno, a insegurança na própria escrita". 

Há algum trânsito, mas não feito a propósito. Nunca tomei a decisão de parar de escrever poesia. Como eu disse, obxectivar o meu percurso literário é fazer lista de obras publicadas: quatro poemarios e três livros de prosa. Mesmo que a cronologia das edições não corresponde à da criação. As Folhas do Bacalhau, por exemplo, comecei a escreve-las em 1985, quando já tinha terminado Sedimentos. Comecei por ensaiar versos como expressão de ansiedade. Aliás, o meu primeiro poema publicado por volta de 1971, foi Oda a ferramenta, devedora das Odas elementales de Neruda, e que apareceu no suplemento cultural de um jornal compostelano.

Durante anos a minha actividade política estinhou, embora não estinhase de todo a escrita, digamos criativa. Além disso, nunca deixei de escrever poesia, ainda que nos últimos anos rebaixase a intensidade com que o faço, em benefício da narrativa. No caixão dormem três poemarios que aguardam melhores tempos para a lírica. Com tudo, é verdade que, desde 2006, ano do meu último poemário publicado, Filogenia do sangue, apareceram duas obras narrativas: Renacer em 2008 e As vidas de Nito, neste ano que corre. Recentemente, mitigada a minha actividade política e animado pela boa recepção da crítica, insisto na prosa narrativa com histórias alicerzadas em figuras históricas: a pintora Artemisia Gentileschi, o sábio Galileu, o arcebispo Xelmírez ou a rainha Urraca. Embora no meio escrevo As vidas de Nito, mais contemporânea e que não exigiu muita documentação, pois já a tinha no meu disco rígido.

-Se compararmos os dous últimos romances aos que me acabo de me referir, Renacer e As vidas de Nito, vê-se, do meu ponto de vista, um feito importante: o primeiro é, por seguirmos uma convenção clássica, um romance histórico, com alicerces em grande parte documentais, em quanto As vidas de Nito constitui um exercício da memória e da experiência persoal. Valentin, um dos protagonistas d’As vidas de Nito, considera “que se deve escribir primordialmente do que se conhece a fondo”, opinião que eu poderia assinar, ainda que tenha de reconhecer que a minha aversão polo romance histórico tenha um ponto de exageração. Então: qual é a diferença anímica, psíquica —se é que existe— à hora de abordares estes dous romances? Como enfrentaste cada um dos dous processos? Em qual dos dous te sentiste mais cômodo? E, em relação com o anterior, até onde chega o caráter autobiográfico do texto?

Avondas perguntas e nenhuma farrapo de gaita. Talvez estes temas dariam para um seminário de 40 horas. Na minha escrita há um denominador comum: escrevo sobre o que me interessa, sobre o que eu quero conhecer e tamém sobre o que me inquieta —os demônios interiores—. O corolário seria que aspiro a espalhar esse ponhamos "conhecimento" e reflexões, que me parecem de interesse; afinal, um perigoso desejo didático.

"Mitigada a minha actividade política e animado pela boa recepção da crítica, insisto na prosa narrativa com histórias alicerzadas em figuras históricas"

Diferenças poucas, ainda que as vidas sejam mais autobiográficas; nas novelas históricas vão também os demônios interiores. Por exemplo, no Renacer as relações de Aretino com a mãe, o papel da família ... No meu caso, na medida em que sempre vai algo próprio no texto, no processo da escrita há sempre um momento doloroso, embora também haja outros momentos humorísticos. Cómodo não estou quase nunca. Não sou um artesão que domina as ferramentas e saiba exatamente a cada momento na fase em que está e qual vai ser o resultado de seu trabalho. Enquanto escrevo estou aguilloado pelas dúvidas e a insegurança .

A principal diferença vai no processo, não tanto na escrita. Num caso, nas tramas históricas, dedico muitas horas a documentação. Na preparação é quando mais desfruto. A história de Artemísia, a pintora, cativou-me. Quando escrevi  As vidas… , como eu disse, já estava bem documentado, tinha tudo dentro, ainda que a memória seja tão traidora. As vidas de Nito é uma obra na que apanhei muito material autobiográfico, com sucedidos verídicos, mesmo que as diferenças de Casiano e um servidor sejam óbvias.

-Continuando: essas diferenças entre autor e Nito sugerem também semelhanças. N’As vidas de Nito fazes uso dum procedimento que possui uma tradição literária importante. Que eu lembre, agora mesmo me vêm à cabeça focagens semelhantes em Los cachorros do primeiro Vargas Llosa ou em Las babas del diablo de Cortázar. Refiro-me à fusão do “eu” e o “ele”. A minha pergunta é se essa escolha esteia, justamente, um projeto subtil de identificação não já entre narrador e Nito, mas entre narrador e Autor. 

Talvez, no subconsciente, sim, há uma mistura de vozes, o leitor pode sentir a fusão que indicas. Com tudo, o narrador principal é Nito, um homem vedranho, sem família e, como se pode deduzir das respostas anteriores, um homem ressentido, desconforme, a voz dominante são as suas reflexões e conversas, quer com a neta, quer com os outros moradores, quer com Valentim. Mas de vez em quando, para poder vê-lo de fora, há uma terceira pessoa, e fala dele para que quem leia tenha outra visão do protagonista. Assim, pode intervir o filho, o pai de Aldara , na sua sumária e decisiva aparição. Para ter uma visão poliédrica de Nito é preciso o concurso de outro narrador .

"A identificação entre narrador e autor é uma questão que não sei precisar nem em geral nem neste caso. Acho que sempre existe e nunca é cabal".

A identificação entre narrador e autor é uma questão que não sei precisar nem em geral nem neste caso. Acho que sempre existe e nunca é cabal. Embora se fale de seres fantásticos, o autor anda a reu por entre a tripada de seus personagens. É impossível criar personagens sem deixar neles a marca, ou o negativo da marca. Na escrita de cada autor está, mais ou menos codificado, o seu retrato .       

-Não, eu não falava de confusão, mas de fusão, já que acho muito interessante esse troco do ponto de vista que vai do ele ao eu ou ao nós ... ora, para além disso, há uma cousa que a mim particularmente me surpreende: do meu ponto de vista, Nito é um ser muito só. Morta África, semelha que só tem relação com a sua neta Aldara, praticamente uma desconhecida até o momento de começar as visitas, o seu amigo Valentim e as pessoas a compartilharem com ele a vida na residência. Mas Nito levou uma vida ateigada de relações sociais: universidade, mundo do trabalho, militância política, atividade cultural. Qual é a causa desta solidão, quando o esperável não deveria ser isto?

Não sei. Não conheço o que não está escrito. Deveria escrever um livro sobre esse tema tão interessante. Só posso dizer que muitos dos colegas e até mesmo amigos, da minha fase universitária desapareceram da minha vida ao começar as nossas respectivas vidas profissionais. Além disso, a amizade é uma planta que precisa cuidar para evitar que murcha e nem sempre o fazemos. Em geral, há, também, um trânsito em quanto aparecem os filhos. É difícil manter relacionamento com a gente solteira e sem filhos. Eles têm outros horários... Nito diria que cada vida de uma pessoa tem os seus amigos e, ao final, são poucos. Além disso, se for o caso, como viveu tanto vão lhe restar poucos. 

-Do meu ponto de vista, o livro fica atravessado por um vento de devastação e morte —quer no pessoal, quer no coletivo— que testemunha o percurso do tempo e que se serve dum campo semântico inequívoco e recorrente: “fracaso colectivo”, “torpe fachenda”, “candidos cimentos”, “derrota irreversíbel” que a própria Aldara constata quando diz referindo-se a Nito: “veña a mortificarse, a furgar”. Ora, existe um segundo aspecto que não está constituído pola matéria da derrota, mais, por dizê-lo de alguma maneira, pola destruição da Utopia: “quimeras igualitarias”, “iluminados”, “visionarios”, “utópicas aspirações”, “espelhismo”, “pretensões prometeicas”. Não achas que esse discurso é o que hoje se acha presente na ideologia conservadora? Quantas vezes escutamos que se nos chamava “iluminados” ou “visionários”, que devíamos renunciar à utopia quando, em verdade, a realidade de hoje foi a utopia de ontem?

Quanto tu dizes é verdade ainda que não em termos absolutos. No texto há também outros ventos e outras brisas. Como anedota, a palavra "vida" aparece mais de quatrocentas vezes no texto. Eu acho que cada pessoa ao ler destaca algumas coisas ou outras. Além do que dizes há suficientes reflexões sobre a necessidade de ir contra a desordem, contra a entropia, diz Nito. O protagonista faz um esforço contínuo para entender e, de qualquer forma, Nito diz expressamente que não se arrepende do feito. Mas não há uma fronteira clara ou um programa de ação. Por uma parte, Nito, mesmo de velho, defende uma atitude de confronto com os que mandam, um confronto não só político, mas ideológico, mas por outro, considera que a ação política deve ser menos arroutada que a de moço, mais equilibrada, e por isso vem a autocrítica. Sobre as utopias e sobre a forma de achegá-las, sobre o equilíbrio entre o coletivo e o individual, há muita teia que cortar .

Eu não penso assim, mas, talvez, o livro poder ser lido como apoio às idéias reacionárias e de dominação, nao sei. Do que estou convencido é de que não houve grandes avanços na realidade moral da humanidade, mas essa é farinha de outra muinhada que não aparece explicitamente no livro.

"A minha escrita, em geral, pode ser vista como um exercício a meio caminho entre a antropologia, a filosofia e a política". 

Não, não, eu não disse que o livro pudesse ser lido duma perspectiva reacionária. Isso seria excessivo. O texto transparenta que Nito é uma pessoa desenganada, mas de esquerdas, mesmo até o instante final, nas derradeiras linhas que lhe escreve a Aldara. Nelas a perspectiva, norteada pola relatividade e a probabilidade não casam com um pensamento reacionário. Ora, uma pequena brincadeira: deve-se supor que Aldara é a editora (no sentido anglo-saxão do termo) d’As vidas de Nito? Digo-o porque as palavras finais que ela lê não são exatamente as mesmas que as que iniciam o volume. Então?

É claro que Aldara é o motor, a causa eficiente das reflexões escritas de Nito e também morgada, que recebe o herdo do avô. Continuando com a brincadeira devo dizer que andei a escrever As fichas de Nito, ...

-Ah! , quer dizer Apostilas ás vidas de Nito, não é?

(ri) More or less (ri de novo) com a diferença que As fichas de Nito são um projeto inacabado e as apostilas das que ti falas não. Trata-se de um livro em que a neta, depois de morto o avô, decide ordenar os papéis herdados para publicar alguma coisa. A verdade é que tenho querença por muitas das "fichas" de Nito e quisera vê-las publicadas. Além disso, sinto que há algo a dizer sobre como afectou à neta conhecer o avô. No que dizes que as palavras não são exatamente as mesmas pode dever-se a que na primeira parte do livro são possíveis de serem lidas como reflexões do protagonista e ao fim, como se diz, já são escrita. Em todo o caso, o que importa é essa declaração final, explícita, de que quanto fez ele nos meses postremeiros foi devido ao encontro ventureiro com ela e que quer deixar-lhe a ela esse derradeiro esforço por viver.   

-Eu senti-me identificado com um aspecto que aparece n’As vidas de Nito. Embora sermos ti é mais eu pícaros —como se di no norte— de cidade, possuímos umas fortes ancoragens com isso que genericamente se chama a aldeia, a tua São Cosme de Barreiros, a minha Salceda de Caselas. Eu, teimo, senti-me muito identificado com as vivências de Nito na aldeia que eram para ele um ancoradouro amável, como para mim o era. Que é o que faz feliz a Nito na aldeia que não acha na cidade?

Eu acho que essa felicidade infantil e adolescente tinha muito a ver com o verão, com a liberdade horária das férias. Mas também havia um mundo de relações que o estimulavam. Na aldeia Nito não era tratado pelos moradores como uma criança, o pequeno de tudo em casa, mas quase como um membro mais. As crianças da aldeia amadurecem mais cedo, trabalham, têm certas responsabilidades, como ficar com as vacas, ajudar a juntar os molhos, apanhar as patacas, ... que uma criança de cidade não pode nem sonhar. Nito na aldeia sente-se maior, cousa pola que devece.

Além disso, estava o mundo da relação com as jovens, mais facilmente na aldeia por ter colegas que faziam de intermediários e por existir as verbenas onde o encontro era mais natural e frequente. Mesmo no aspecto físico estava mais cómodo na aldeia. Como se diz no texto, o seu cabelo creche era bem avaliado na aldeia enquanto na cidade se considerava pouco atraente. Em geral Nito, creio eu, na aldeia sentia-se mais próximo da natureza, e não só pelos insetos que colecionava e as enguias que pescava, mas também mesmo polo facto de que o que comia estava ali, ao lado, e era apanhado: os ovos, o leite, legumes, os limões ... Por outro lado, ser de cidade na aldeia tinha certo prestígio. Nito sempre encaixou bem nesse outro mundo onde era tratado quase como adulto. Em geral, diria Nito de adulto, era um viver menos convencional e mais autônomo do que o da cidade, sempre mais rígido em todos os sentidos . 

"O processo de conhecimento não deve ser entendido de uma única maneira, usando a lógica formal, mas também o sentimento e a intuição. Neste sentido, na minha obra há uma reivindicação, mormente implícita, da ciência". 

-Eu achei muito interessante essa atenção pola raridade, representada pola parelha Cham e Eng, ou por Edward Mordake, que merecia chamar-se Edward Mistake, os quais, em resumo, são prolongações de Nito —na infância, um ser raro, ou polo menos visto assim polo Nito adulto—. Resulta interessante a escolha das fichas, muitas com referência à termodinâmica, ou ao evolucionismo, ao clássico The two cultures, de Snow, que já tem meio século e como se fosse ontem. Não é certo que na tua obra —As folhas do bacalhau, Memoria de Lucrecio— existe uma reivindicação constante sobre o papel da ciência e sobre a relação entre a ciência e a literatura? 

Sim. Como já disse antes, com alguma arrogância, a minha escrita, em geral, pode ser vista como um exercício a meio caminho entre a antropologia, a filosofia e a política. Eu não acho que existam compartimentos estanques, estâncias incomunicáveis na mente humana. O pensamento no estado de vigília é um. Até mesmo o pensamento mágico não é independente do ambiente cultural em que é produzido. O ser humano tem facetas, ou momentos, como desejarmos, mas a esquizofrenia, a cisão, é uma patologia. O grande erro da escola moderna foi arredar Ciências e Letras como se fossem áreas distantes e mesmo antagónicas. A filosofia, não como lista de biografias, mas como disciplina do correto pensar para bem viver, e a matemática, não como receituário de fórmulas, mas como arte do raciocínio, são muito parenteadas. Eu não entendo como se pode estar abandonando a filosofia no ensino oficial. O utilitarismo grosseiro está fazendo muito dano por fabricar pessoas unidimensionais.

O processo de conhecimento não deve ser entendido de uma única maneira, usando a lógica formal, mas também o sentimento e a intuição. Neste sentido, na minha obra há uma reivindicação, mormente implícita, da ciência. Sem reflexão não há criação e em todo avanço científico há criação e até mesmo poesia, ou seja, um outro modo de ver as coisas. Pensemos na ação dos fermentos ou nas propriedades dos raios X. Se não há poesia neles não sei onde estará .

-Sim, como dizia Valente, ciência e poesia são dous caminhos complementares de olharmos a realidade ...

Com efeito, assim o vejo eu ...

-Qual é o trabalho que neste momento tens nas tuas mãos? Poesia? Narrativa?

Já aludí, tenho na gaveta Aníbal e a pintora, sobre a vida de Artemísia Gentileschi, pintora do S.XVII, e três livros de poemas, sempre incompletos: Na fisura do Ceo, Cantos Milesios e Introducción ás Ciencias. De vez em quando retomo os poemas para corrigir e ordenar, mas dedico mais tempo a terminar o romance No espelho da noite, uma espécie de biografia de Galileu, com ênfase na sua relação com as mulheres. Além disso, parece que o arcebispo Gelmírez e a rainha Urraca gostariam de dizer-me alguma coisa, ainda não sei bem o quê. Passatempos não faltam.

-Que teima com a Literatura concibida como Arqueologia!! ... Para quando um romance sobre o home de Neanderthal ou a mulher de Cromagnom? E agora, um pouco mais a sério: de que outras cousas que não saíram nesta conversa desejarias falar?

Debo ser compasivo coas persoas lectoras e non atormentalas máis, xa falei dabondo. Apenas darche as grazas a ti e a Sermos Galiza pola atenção e o espazo dedicados para As Vidas de Nito.

Comentarios