Opinión

Tinta de limão (Outubro).

Xosé Ramón Mariño Ferro tem sinalado, sobretudo através do cancioneiro popular

ETNOGRAFIA DOS GESTOS: LAVANDEIRAS E CARIÁTIDES

Xosé Ramón Mariño Ferro tem sinalado, sobretudo através do cancioneiro popular, como os camponeses galegos achavam especialmente atrativa a postura das mulheres debruçadas sobre a tábua de lavar no rio. Mas qual o porquê deste gosto? Um dos relatos de Dos arquivos do trasno põe-nos na pista. Em “O vagabundo” Rafael Dieste retrata um moço que jamais poderá casar por pobre, que pouco a pouco se vai envelanando nas ganas de vingar-se das raparigas que se burlam dele: “Rinse porque van xuntas, que se non... El ten  uns fortes brazos capaces de apreixar á mais rebelde. ¡Ai aquela dos beizos de cereixa! É a que máis ri. Si, el ten brazos fortes. Quizais un día mentres o cuco canta no pausador rumor dos piñeirais…”, cavila quando, então, aparece a vítima: “A mociña dos beizos de cereixa escolleu o relanzo máis agachado para o seu ledo labor de lavandeira, e, baixo raveosos arcos de folhamio e garula de paxaros, bate e frega unha prenda moi branca e na pedra luída. Non obstante o frescor do sitio escolleito, a laboría puxo lumen as meixelas da moza” (1). O que atrai da postura de lavandeira, para além da maldade deste agresor, é o mesmo que muitas outras disposições corporais em contextos de dominação masculina: a vulnerabilidade da mulher, no sentido de limitação de movimentos. Manuel García Barros registou nas suas memorias de infância outro destes gestos, quase sempre esvaezidos sem calhar em história, para infortunio do etnógrafo, quando um moço se acercou à sua prima Sabela, que estava a apanhar erva, para engatar com o pretexto de ajudar-lhe a subir o cesto à cabeça. “(e) non tivo o mal gusto de facerlle dar a Sabela unhas voltas sóbor sí mesma coa cesta na cabeza, chiste que moitos facían en casos semellantes” (2).

(1). Rafael Dieste, “O vagamundo”, Dos arquivos do trasno, Vigo, Galaxia, 1994 (1926), p. 49.
(2). Manuel García Barros, Aventuras de Alberte Quiñoi, Vigo, Edicións Castrelos, 1976 (1972), p. 205.

CEREIJAS PARA A INDEPENDÊNCIA

“El canasto de matambá sí lo tenemos todavía en la mano porque nos sirve para resistir lo que es de plástico. (…). También usamos las tejas para resistir y no comprar láminas” (1). Que formosas palavras as de Nicodemo, vizinho do MAREZ General Emiliano Zapata! Fam pensar em Gandhi, quando fugia da grandiloquência dos congressos políticos e procurava a maneira em que a Índia pudesse ser autosuficiente em matéria de saúde dental: como faremos as escovas dentais? A independência nesse âmbito domêstico, humilde e fundamental da higiene; a resistência num telhado que resguarde da chuva sem a invasão da uralita… Entretanto, quase milagrosamente, o Sindicato Labrego Galego salvou da extinção a cerdeira-dos-cregos e a maceira foxá. Cereijas para a independência.

(1). EZLN, Gobierno y resistencia. Materiales de la 1ª Escuelita Zapatista (Cuaderno de texto de primer grado del curso de “La Libertad según l@s zapatistas”), México, 2014.

ERVA MOURA

No  módulo de isolamento de Topas havia três galerias com cadanseu pátio: o pátio da primeira galeria, o pátio da segunda e o pátio da terceira. Os presos políticos mudavam-nos de vez em quando de galeria –sem coincidirmos dous de nós juntos-, não fora ser que enraizásemos. 

Más má erva nunca morre. 

No primeiro pátio, entre as raganhas do betão, floresceu uma campanula patula. Apanhei as flores, lilás, sequei-nas entre uns versos sufis, e enviei-lhas por carta à amada.

No segundo a resistência vegetal rebentou o cemento de uma esquina com hortelã. Apanhei-na, coloquei-na num copo de água e compartim-na com o meu companheiro tangerino, para fazer um bom chá mouro. 

Mas no terceiro… no terceiro apareceu um pé de solanum nigrum, o que as nossas meigas chamam erva moura ou tomatinhos-do-demo, e então foi quando La Voz de Galicia assegurou que na noite anterior a polícia quase me atrapa num bosque ao Sul de Compostela, para regocijo escandaloso dos meus carcereiros, que não dessimulavam a sua burla perante tal derrape do jornalismo policial. Mas nessa manhã já não ficava rasto da solanum ningum. 

A RESPONSABILIDADE DE SER FLOR

Rémi Fraisse é um moço francés de 21 anos, ativista de um grupo ecologista que defende a flor ranúnculos ophioglossifolius, endémica dos humidais do Testet –departamento de Tras, no Midi-Pirénnes-, da ameaça da barragem que o agronegócio projeta em Sivens.
 
Nos enfrontamentos entre ecologistas e gendarmes, na noite do 25 ao 26 de outubro de 2014, Rémi foi assassinado. Na sua roupa acharam-se restos de TNT, um dos componentes das cargas de granadas que usam os gendarmes, braço armado do Estado e o Capital.

Nas concentrações de Baiona (Iparralde) em recordo de Rémi a gente, em silêncio e com antorchas, erguiam árvores de palavras: “ILS ONT COUPÉ UN ARBRE / NOUS SÈMERONS UNE FORÊT! / ETA SEGI AURRERA!”. Soubem do acontecido por um jornalista basco, que rematou a sua crônica com uma frase incontestável de Emily Dickinson: “Ser flor é uma grande responsabilidade”.

BANDEIRAS

Imaginai que fôssemos República e que cansássemos de bandeiras atadas a mastros como papa-ventos tristes. Convoca-se um concelho aberto para resolver a nova simbología. Sob a sombra do Carvalho, sentados em roda, o nosso convidado especial, o moçambicano Mia Couto, propõe tímidamente: “e se não içássemos bandeira mas a terra?”. “No arume farpado”, engade Susana Sánchez Arins,
“areja branco tendal

e desenha a cândida bogada
a limpa bandeira precária
duma mátria em construção
”.

CARVALHOS SOB “LEI ANTI-TERRORISTA”

Na altura encontrara um artigo da antropóloga Laura Rival sobre as “famílias de árvores” dos huaroni, os meus amigos de Minho escreviam-me que um dos pinheiros mais grandes da Galiza passara a fazer parte da sua, dera-me por pintar polícias arrincando bilitroques e rastejava na etnobotánica materiais para uma “Flora política da Galiza”. Então, em plena febre botánica, a Guarda Civil detivo em Oiartzun quatro pessoas acusadas de “enaltecimento do terrorismo” após intentarem fazer uma carvalheira no monte Aritxulegi plantando 239 esquejes. As fotografias dos fardados metendo os carvalinhos na carrinha policial dim-no tudo.

A (CONTRA)REVOLUÇÃO DOS BOXES

As políticas do corpo de Federico o Grande de Prússia proporcionaram a Michel Foucault os materiais com os quais forjar o conceito de disciplina, “o procedimento técnico unitário polo qual a força do corpo está com o menor gasto reduzida como força “política”, e maximizada como força útil” (1), isto é, económica. Hildebrandt, o biógrafo do monarca, contou o dialogo que mantiveram Federico e o príncipe Leopoldo de Dessau durante um desfile militar. À pregunta de Federico o Grande de que era o que mais impressionou, Leopoldo respondeu: 

“-Sua Majestade, que mais poderia impressionar-se me não fosse a esplêndida apariencia das nossas tropas e a regularidade e perfeição dos seus movimentos?

-Tudo isso –contestou Federico- consegue-se com tempo, atenção e dinheiro (…). Não, o que me assombra a mim é que estejamos aqui, perfeitamente tranquilos, vendo passar sessenta mil homens que são todos os nossos inimigos, que são mais fortes e que estão melhor armados que nós, e que, ainda assim, tremem perante a nossa presença, enquanto nós não achamos razão para preocupar-nos. Este é o milagroso efeito de orden, a subordinação e a estreita supervisão”.

Passou o tempo da militarização das massas, o poder reconfigurou-se e com ele o disciplinamento dos corpos, que se tornou um processo interno, autoimposto para maior segurança. O poder já não impõe manu militari, produz subjetividades. Com a crise económica e o incremento do paro masculino deu-se um fenómeno que o demonstra: enquanto as ruas estão vazias e o brutal corte de direitos avança sem apenas conflitividade, os ginásios enchem-se de homens. As folhas de cor salmão elogiam o espetacular sucesso da industria do culto ao corpo: quatriplicarom-se os treinadores pessoais, e as franquicias de grandes empresas de ginásios chegam até aas vilas mais pequenas. Mesmo em paro, e sem ingresos, os soldados intentam poder pagar-se um instrutor prussiano. Às vezes parece-me ver, entre pesas e mancornes, Federico de Prússia sorrindo com a sua vitória póstuma.

(1). Michel Foucault, Vigilar y castigar, Madrid, Siglo XXI, 1994 (1975), p. 224.

OS INESPERADOS FILHOS DE GRAMSCI

Com a sua sagacidade habitual Manuel Vázquez Montalbán soubo reconhecer o que nengum comunista se atreveria a fazer, que os que melhor entenderam Gramsci e os procesos de construção de hegemonia foram os inimigos, as elites culturais franquistas. Uma, na altura, nova tecnologia, a rádio, foi uma arma decisiva nesse processo (1), e de facto o regime não poupou em esforços: investiu muito dinheiro em pôr a infraestrutura, implementar a eletrificação e criar créditos especiais, mesmo chegando a existirem aparelhos familiares de rádio que funcionavam com moedas, que recolhia periodicamente o prestamista. Com este “povo radiofonizado”, o regime construiu o seu novo sentido comum através das ondas, em forma de ingénuas canções populares e aparentemente inócuas rádio-novelas que, porém, resultavam muito mais eficazes do que toda a propaganda oficial.

Mas uma introdução aos gramscianos de direitas não pode ser esquecer essa prodigiosa inteligência política que foi Manuel Fraga. Ele, ao contrário que a maioria das elites ilustradas progressistas, entendeu que o povo não se mexia nessa suposta “identidade dual”, ora espanhola ora galega, senão todo o contrário. Com uma população rural numa percentagem excecionalmente alta, Fraga entendeu que não havia tanto uma indecissão nacional quanto uma outra –uma mui outra- configuração identitária, indígena (poderia-se dizer “pré-nacional”, mas o prefixo parece indicar uma necessária evoluição à identidade nacional que não é tal). Para dizê-lo em termos de Chantal Mouffe (2) , para este povo indígena poder participar como legítimos adversarios na negociação de conflitos, é dizer, “na política”, precisavam traducir as suas práticas e ontologías no que é aceitável para a Modernidade. O movimiento nacional-popular conseguiu ser esse tradutor em alguma ocasião, vestindo conflitos indígenas em defesa da Terra com as roupas do conflito nacional (3). Mas foi Fraga quem o soubo fazer melhor do que ninguém, entendia o que sucedia e freou a emergencia do “legítimo adversário” convertendo-se no grande líder letrado; se a indigenidade ia aparecer como sujeito político moderno, que fosse como legítimo amigo, não como adversário. A sua estratégia foi magistral. Por una parte, livre dos preconceitos das elites progresistas, entendeu, como os novos líderes latinoamericanos (4) que o político desborda amplamente a política, e que todo isso que se foi desprezando como “folklore”, “religiosidade” ou “tradições” eran ámbitos centrais para construir a hegemonia. As suas imagens na Interviú fazendo queimadas, a romaria de Faro, as gaitas, o polvo à feira… são exemplos da sua inteligência. Por outra parte, uma minuciosa contra-planificação que desativasse o nacionalismo como rival, apropriando-se de todos os seus símbolos para desativá-los e integrá-los na sua propia estratégia, fam de Fraga um gramsciano excecional.

(1) Manuel Vázquez Montalbán, Crónica sentimental de España, Barcelona, Bruguera, 1980, p. 109 e pp. 121 e ss. 
(2) Chantal Mouffe, On the Political, Nova Iorque, Routledge, 2000.
(3) “A ‘terrible beauty’ de Guilharei”.
(4) Marisol de la Cadena, “Política Indígena: un análisis más allá de “la política”, WAN e journal, nº 4, abril de 2008.

DIA DA RESISTÊNCIA INDÍGENA

De Santiago de Chile, Tánger, Yidda, Sants, Bilbau, Malabo, Orão, Sinaloa, Monte Alto e Loureda… O 12 de Outubro não colhe nem un só espanhol no isolamento de Villabona e, porém, quase todos somos das colónias, e um mesmo está acusado de atacar a Virgem do Pilar. À nossa maneira todos falamos do tema: o relevo do governo progresista de Chile no extermínio do povo mapuche, a batalha entre o imperio espanhol e o asteca, a permanencia da Guarda Civil na Guiné-Equatorial, ou a curiosa compartilha da autoridade colonial do Vicerrei –ante passado genealógico do Subdelegado do Governo- nas Índias e Reino da Galiza. Também pensó, mas não digo nada, numa curiosa tradição galega: Montero Ríos assinando o desastre do 98, Fraga a independência da Guiné, e Rajoy ao borde da catalã.

Entretanto, na Terra, uma outra tradição, que se remonta polo menos ao sucesso nas eleições municipais de 1999, encontra novos oficiantes. Estarrece ver com que normalidade os cargos “da mudança” partillham festejos com o grupo armado que mais mortos causou no nosso país. Há anos, a justificação de portas adentro era mais ou menos esta: eu odio ter que participar em tal acto, vai contra os meus principios, mas é necessário por responsabilidade institucional ganharmos apoio social para, no dia de manhã não ter que fazê-lo. Eu sacrifico-me, e com toda a dor da minha alma estou disposto polo bem do país a aparecer como um traidor se é necessário. Quase como esses heróis kantianos aos que cantava Silvio Rodríguez, infiltrados no bando inimigo e mortos mesmo aos olhos da sua família como traidores, tendo na realidade, dado um serviço impagável à Revolução. “A confussão”, tem dito Tzvetan Todorov, “fai-se chamativa quando estes combatentes pola liberdade se assimilam aos disidentes dos países comunistas de Europa do Leste. Estos pagavam a sua audácia com várias anos de deportação ao de gulag. Os de agora correm o risco de ver-se invitados a comer na casa do chefe de Estado. É um pouco excessivo –confessemo-lo- querer beneficiar-se ao tempo do honor reservado aos perseguidos e dos favores concedidos polos poderosos”.

“ESPANHA” COMO EQUIVOCAÇÃO SEM CONTROLO

O antropólogo Viveiros de Castro chama equivocações sem controlo a “um tipo de falha comunicativa onde os interlocutores não estão a falar da mesma cousa e não se dão conta” (1) , porque estão a falar desde mundos ou ontologias diferentes. Estas equivocações sem controlo dificultam enormemente a investigação antropológica. Um exemplo é o que sucede quando gente do mundo moderno, com a seu grelha identitária em chave nacional, fala com camponeses galegos e aparece na conversa a palabra “Espanha”. Castelao, dotado dum penetrante olho antropológico, advertia: “que o conto non sexa que os galegos aparentemente renegados tomen a Hespaña como a tomaba o tamborileiro de Cerponzóns…”: 

“Cando foi a Madrid o coro galego de Feixoo levaba consigo un tamborileiro de Cerponzóns, un vello que nunca saíra de Galiza. Cando xa levaban quince días en Madrid, o tamborileiro, apouvigado pola morriña, díxolle a Feixoo: “¡Eu quero irme a Hespaña!” (…) galegos que falan de Hespaña e sóio levan no sentimento a imaxe da súa terra (…)” . (2)

A etnografia desta confusão é ampla e seguramente todos tenhamos anedotas pessoais. No filme argentino Luna de Avellaneda, uma associação desportiva-cultural fundada por um emigrante galego festeja o aniversario. As meninas das aulas de dança sobem ao cenário interpretar um baile flamenco, e o velhinho galego, encolerizado, arremete contra a professora de baile: “Que é isto??!”; “Dança tradicional espanhola, como pedirá voçê”, responde ela surpreendida; “Eu falava de moinheira!”.

Em Ordes tenho visto como um labrego duns setenta anos, numa festa, recebia a sua cunhada leonesa com um burlão “¡Bienvenida a España!”. Uns amigos de Moranha ainda recordam com humor como, quando foram de autocarro com gente da comarca à manifestação de Nunca Mais em Madrid, mais de um vizinho de idade anunciou ao grupo que “sairam de Espanha” ao passar Pedrafita do Zebreiro e achegarem-se à meseta. Um jornalista de La Voz de Galicia, do qual não recordó o nome, comentara na sua coluna o escándalo que  montara no Aeroporto de Barajas uma senhora galega que ia embarcar para ver a família em América. Ela discutia em galego com a rececionista, que não percebia nada, e ao achegar-se o jornalista para mediar, confessou-lhe aliviada: “Menos mal que me ajudou ustê, esta gente parece que não entende o espanhol!”.
Ao falar com os velhos de “Espanha” é como se fossem aparecendo vários níveis de definições históricas. Os mais escolarizados têm a ideia de Espanha que se construía na escola franquista, mais ou menos deformada pola sua visão do mundo prévia; com outros parece que estamos a falar com Castelao ou Alexandre Herculano, pois a sua “Hespanha” inclui Portugal e tem na Galiza a sua essência; com muitos, Espanha é a sua aldeia e pouco mais.

(1). Eduardo Viveiros de Castro, Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation, Tipí Journal of the Society for the Anthropology of the Lowland South America, 2004, (2) 1: 3-22.
(2). Castelao, Sempre en Galiza, Livro II, Cap. XIII.

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