Opinión

Carta aberta a meu irmão


Há ocasiões em que a vida troca-se num pesadelo. Semelha que um fadário insidioso vai a por ti, apresa-te, mutila-te. E então, espertas com a sensação de ser uma automata, sentes que as leis da gravidade são alteradas, justo no instante em que a ausência é uma porção desmesurada, impossível de superar.

De súbito topas-te fronte à crua realidade, sem parapeito, negritada, só com as tuas bágoas, caminhando com os pés em coiro baixo a chuva.

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Thy soul shall find itself alone
'Mid dark thoughts of the grey tomb-stone –
(...)

(SPIRITS OF THE DEAD) Edgar Allan Poe

As corredoiras doutros momentos atravessam-me como uma maçada na memória. Eu acreditava numa existência longa e sem fissuras, mas a realidade afundiu-me de novo irmão, volto a descobrir o aguilhão afiado e ferinte da morte.

A efemeridade converte-se num triste facto, bate-me na boca com violência inaudita, extrema, de hecatombe. Não posso mais que romper coma uma vimbia feble, encharcada, e agonizo num leito de juncos a carão da fonte do espinho. Na mesma fonte que me feri quando era criança. Hoje, ao cabo dos anos, volvem a mim todas as lembranças tristes. Vejo-me no Castrove sozinha, imóvel, apoiada no tronco enorme dum carvalho, quiçá aguardando o meu fim, não sei, mas estou aguardando!

imageNa eira de abaixo ouviam os cadelos, estouram numa ansiedade coletiva os grilos da nossa infância, aturdem-me com o seu lutuoso pranto e feneço um pouquinho mais cada dia.

Não há trégua, o tempo joga conosco do jeito que ele decide. Somos monicreques penduradas do fio extinto, caduco, de decesso. 

Este é o tempo
Da selva mais obscura
(...)
Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura
(...)

Sophia de Mello Breyner Andresen

Ontem, é uma palavra que dói, que fende, que troca-me a alma ao estado duma matéria inanimada. Ontem, os tanatórios invadiram as estradas próximas à minha casa. Inevitavelmente os recunchos e instantes trazem recordações inesquecíveis.

Uma fatal circunstancia pegasse-me nas costas, pareço uma bétula triste, afogada no caudal mínimo do rio da Ponte Xoán.

A casa está coberta com uma intensa névoa que se precipita pelas sobressaltadas janelas. Fica derrubada, anegada no pranto que afoga na lagoa dos amargos velórios, e repta, arrasta-se pelas pedras das paredes, dos valados a dor imensa. Numa movimentação implacável.

Volvem, volvem os regimentos de lesmas negras a tomar o nosso lar, centos, milheiros, deslizam-se pelos degraus do curral, estão aí, intensificando a angustia, elaborando um lenço amargo de despedida.

Nesta imensa solidão, o pensamento achega-se à lembrança daquele outro ano fatídico, o 81. Irremediavelmente, as prematuras viagens deixam-me chumbo e fervenças imensas nos olhos. A vossa, foi uma despedida tão cruel que não sei como suturar a fenda tão enorme, esta sequela indelével.
Irmão, pai, não consigo evitar que um lamento acuda novamente ao meu coração malferido!

Deixa de tocar campá
enterra o teu son lastimeiro
fúnebre tocata non, cala
que volta a tristura ao meu peito

Poema escrito à morte de meu pai.

Quero pensar irmão, gostaria que te encontrares nalgum belo lugar ao carão do nosso pai!.
 

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