MIA COUTO/TRES ANOS DE SERMOS GALIZA

''Posso ser um pequeno instrumento para que Moçambique tenha nome e rosto''

Resgatamos para a secção #3AnosdeSermos esta entrevista inédita ao escritor moçambicano, feita por Elías Torres e publicada no número 61 do semanário.

Mia Couto
photo_camera Mia Couto

Mia Couto é moçambicano (Beira, 1955), fil- ho de emigrantes portugueses lá emigra- dos pouco antes.

- Quantas vezes tiveste que esclarecer o nome de Mia?
- A mim da-me um certo gozo esta questão da identidade fugidia. Quando está alguém à minha espera há sempre uma certa neblina, há quem espera uma mulher, às vezes uma mulher negra. Dérom-se casos muito curiosos: um professor de literatura do Congo que veio a Moçambique para se encontrar comigo, ele conhecia os meus livros em francês, que não têm fotografia, e ele pen- sava que eu era preto: ele tinha construído uma teoria de como os escritores africanos ganham profundidade quando aprofundam na memória dos seus avós e antepassados africanos. E ele via nos meus escritos isso, e ele combinou para dar-me esses textos e eu pensava: como eu vou converterme em preto nem sequer que seja uns minutos...? Mas ele telefonou lá para casa e eu ainda não saíra e disse-me que telefonara para outra pessoa e que então já se apercebera de que eu não pertencia às tribos mais representativas da África. Mas ele insistia que eu tinha que ter um antepassado qualquer na África.

- Aí está ficando célebre o teu episódio com o Fidel Castro...
- Eu era ainda jornalista e fazia parte dumha delegação presidencial, com o presidente Samora; Fidel deume uma caixa de madeira grande como presente, era uma altura em que nós estávamos em guerra e aquela visita tinha para nós um valor incalculável. Eu olhava para aquela caixa sempre à espera de que chegasse a Maputo e abrisse e tivesse lá uma cousa preciosa. E havia, duma certa maneira, mas eram só vestidos, brincos e colares e cousas para mulheres, Mia Couto era uma mulher para o Fidel Castro. Eu acho que fui o único homem a quem Fidel Castro tentou vestir de mulher.

"No 75 eu ja estava ligado à Frelimo, eu era moçambicano, sentia-me moçambicano"

- Branco, Moçambique, 1975, isso como é?

- 1975 para mim não constitui nenhuma questão. No 75 eu já estava ligado à FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), eu era moçambicano, sentiame moçambicano. Portanto não supôs nenhum drama existencial, nada que me exigisse algumha opção.

- Essa mãe, esse pai emigrantes que têm lá filhos moçambicanos, como se assu- mem?
- Eles assumem-se como portugueses. Creio que o fazem com toda a verdade, com toda a honestidade. Mas são portugueses que perdêrom o mundo, eles fórom para lá mui jovens, não voltárom mais para Portugal a não ser para férias ocasionais. De maneira que este mundo que era o seu, Portugal, morreu. Por outro lado aquilo que era o seu Moçambique também se extinguiu. Eles já tentárom vir para Portugal depois da independência e fizérom-no como opção definitiva. Ficavam um ano e voltavam. Quatro vezes foram definitivamente para Portugal, nunca conseguírom ficar. Agora estão a morar em Moçambique [o pai de Mia, o jornalista e escritor Fernando Couto, faleceu em janeiro de 2013], no mesmo bairro onde vivemos os outros três irmaos.

- Tu és escritor publicando desde a década de oitenta (desde 1983). Tal como eu percebo há uma tendência nos escritores moçambicanos de construir umha imagem de Moçambique, mui possivelmente combatendo os tópicos que possam existir sobre o País. A minha impressão é que a tua obra é uma tentativa sistemática de dar uma ideia de Moçambique que com- bate os tópicos e que os reconverte em elementos identitários e que não faz dos elementos identitários um elemento es- sencial mas um elemento de progresso, de evolução, de vida. Não sei se concor- das com isto...

- Provavelmente... Quando eu penso em escrever eu escrevo sem pensar, no sentido de que não há um programa. Mas, obviamente, no conjunto da obra sobressai que há uma visão do mundo que é minha e essa visão realmente pretende, mesmo que eu não sai- ba exatamente o que eu estou construindo (eu sei o que estou desconstruindo, ou o que estou tentando desconstruir) e algumas dessas cousas são os estereótipos em cima dos quais em setenta erguêrom a identidade essencialista, uma identidade que está sendo inventada a partir do mito de conveniência, do mito de natureza política. Mas isso surge como uma leitura a posteriori, porque quando começo a escrever eu quero contar uma história.

- Em situações como a de Moçambique (e da Galiza e outras), a questão da língua é uma questão sempre mui importante. A língua tem um caráter identitário e de coesão comunitária e, por outro lado, tem também um caráter de progressão de qua- lidade de vida, de aumentar a qualidade de vida às pessoas. Pode haver um drama na eleição do português para Moçambique por parte d@s escritor@s? Houve algum tipo de hesitação, de drama? Há algum tipo de má consciência?

- Não é uma cousa que esteja completamente resolvida, mas também não assume aquele foro de drama lingüístico que é um dos assuntos mais discutidos nos congressos de escritor@s african@s. Qualquer congresso de escritor@s african@s passam um tempo enorme a discutir esta cousa que me parece que a vida toda não dá para resolver. A maior parte d@s escritor@s de Moçambique têm o português como língua materna (são escritor@s negr@s mas são filh@s de estratos sociais que fôrom sendo assimilados pola cultura portuguesa, ou de língua portuguesa polo menos) e não vejo que em Moçambique isto seja um grande problema, até porque em Moçambique se estabelece uma relação com a língua mais solta; a língua portuguesa era uma língua com que se podia namorar, com que se podia ter uma relaçom mais livre, e não era aquela grande dama que, nas colónias inglesas e francesas, tinha que ser respeitada.

"Na Europa há um lado de oralidade,  de infáncia tambem, que está muito desvalorizado"

- O teu primeiro livro publicado foi Vozes Anoitecidas, não foi?
- Esse é o primeiro em prosa, antes foi publicado Raiz de Orvalho, que é um livro de poesia.

- Mas orientaste a tua vida fundamentalmente para a prosa...
- Acho que isto é poesia. Para mim esta fronteira entre o que é poesia e a prosa é mui evanescente. Nesta poesia em prosa man tenho uma liberdade de ligação com o mundo, com os temas, com a própria escrita que me parece que se localiza ainda no mundo da poesia. Portanto, eu uso a poesia contra parte da poesia...

- Sou europeu e falo com algum complexo: tenho a impressão que estamos cá perante uma crise de valores e identidades na esquerda, e observo outra perspetiva de ver a vida que me parece francamente enriquecedora. Ouço aquela música do Cosa Neto com motivo das cheias em Moçambique em 2000, os teus livros, romances, contos, poemas, etc.; neles há uma visão vitalista e diferente, na perspetiva de que as cousas não são nem dramáticas nem terríveis (sendo dramáticas e terríveis) e sempre há alguma outra hipótese de ver as cousas. 

- Eu tenho um pesimismo esperançoso. Há aí uma visão contraditória que penso que está alimentada por uma postura que é muito comum em Moçambique, uma atitude comum a@s subsaarian@s. Hoje [no jantar familiar prévio a esta conversa] falávamos da maneira como no norte de Portugal e na Galiza se atua em relação à comida. Por exemplo, a minha mãe, que é do Norte de Portugal, para demonstrar o carinho que tem por nós atafulha de comida: nós nunca podemos es- tar cheios; não podemos declarar: ‘já chega’. Só tem esta relação com a comida quem passou fome. E eu acho que a relação que o Ocidente mantém com o ‘optimismo’ pode ser comparada com esta atitude perante a comida. @s african@s não podem dar-se o luxo de ser pesimistas, só @s ric@s podem ser pesimistas, @s pobres têm que se ali- mentar recriando uma esperança.

"Os africanos nao podem dar-se o luxo de ser pesimistas, os pobres tém que se alimentar recriamdo uma esperançá"

- No teu caso, a tua obra foi para o teatro, foi para o cinema... a tua obra está traduzida para muitas línguas e, ao mesmo tempo, tu es escritor moçambicano, biólogo, trabalhando no desenvolvimento florestal do teu país... Poderia pensarse que tem que haver umha tentação de fugir de tudo aquilo, dizer: bom, vou ser escritor e acabou; vou para aí fora, não tenho nada a ver com Moçambique, ou uso Moçambique como elemento exótico...

- Nem sequer se me passa isso pola cabeça, sabes? Eu gosto dessas outras cousas que eu faço, das outras cousas que eu sou; quero manter com a escrita umha relação saudável: noutros colegas e escritores há algo de que eu não gosto: todo aquele investimento naquela cousa da escrita como afirmação pessoal, que toda a satisfação pessoal pas- sa por aquela vida. Eu não quero; quero es- crever quando me apetece e eu acho que a minha estratégia de ser feliz é esta: a de me manter múltiplo, a de manter o lugar que me enche de estórias. Sabes? Em 74 eu era um jovem revolucionário endeusando aque- les que eram os líderes da nossa revolução, Samora Machel em particular, o nosso pe- queno deus, e grande herói. Um grupo de jornalistas fomos visitá-lo fora (ele ainda não tinha entrada em Moçambique naquele período de transição para a independência). Todos nós queríamos que ele gostasse de nós e entom todos tínhamos umha estraté- gia e levávamos sempre na carteira cousas que passavam sempre pola política: uns tin- ham decorado citaçons dele, outros sabiam poemas dele, outros sabiam a linha políti- ca da FRELIMO. Quando nos encontrámos era a hora de jantar lá numha base militar e de repente, antes de que nós digéssemos qualquer cousa ele perguntou, voces sabem algumha cançom, da vossa terra? Mas como ninguém soubesse cantar, ele pergun- tou: bom, entom voces sabem umha estória? E ninguém sabia. Aquilo para mim foi um shock, sabes? Porque alguém que nom sabe cantar, alguém que nom sabe contar umha estória, é alguém pobre. Para mim significava aquilo, foi um click, evidentemente nom foi isto só, que me fijo pensar que a minha maneira de ser feliz passa por saber ouvir e contar estórias e assim congelar um bo- cado da infáncia que eu conservo até neste nome que inventei para mim.

- Se eu for a Moçambique, com que olhos devo estar ali?
- Com os teus mesmo, porque eu acho que tudo o que tu encontras lá está dentro de ti. Agora estivem na Suíça num encontro com escritores e alguns diziam: “Ah, mas vocês em África tenhem estórias, nós na Suíça já nom temos estórias”, o que, obviamente, é umha cousa que nom tem sentido. Muitas vezes aquilo que se projecta como umha cousa típica da África está presente na Europa, está adormecida em algumhas pessoas, em algumhas culturas mas nom há nada tam típico moçambicano, tam típico africano. O único é que se deve estar disponível para ver.

- Tu vês, por exemplo, esta Europa adormecida?
- Como escritor vejo que há um lado da oralidade, e da infáncia também, que está muito desvalorizado. O universo da escrita e a lógica da escrita se tornou tam hegemónica, ou, por exemplo, agora, a lógica audiovisual tam omnipresente, que as pessoas já nom se tocam tanto. 

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Esta entrevista foi publicana no número 61 do semanario Sermos Galiza, que podes adquirir na nosa loxa.

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