Análise

Os limites institucionais: políticas sociais e CNI

Borxa Colmenero, avogado e investigador no Espaço Clara Corbelhe, prosegue o ciclo de análises de 'Nós Diario'.

O estado-máquina atuando como um ente com vida própria. (Ilustraçom: Álex Rozados)
photo_camera O estado-máquina atuando como um ente com vida própria. (Ilustraçom: Álex Rozados)

No passado 28 de abril o governo espanhol convalidou no congresso dos deputados, numa sessão com grande polémica, o chamado "Decreto anticrise" para tentar paliar as consequências económicas da guerra na Ucrânia. Forças políticas críticas com o governo de coligação, como o BNG ou EH Bildu, optaram nesta ocasião por apoiar medidas tão necessárias como baixar o preço do gás, da eletricidade, dos carburantes, impulsionar a eficiência energética ou conter as subidas dos preços dos alugueres.

Porém, o debate mediático e social que envolveu a saída deste decreto não se centrou apenas no alcanço social ou na capacidade transformadora destas medidas. O foco principal da controvérsia pública situou-se nas responsabilidades políticas e jurídicas do executivo no caso de espionagem realizada polo CNI a políticos e ativistas independentistas catalães com o software Pegasus. Sem dúvida, as críticas ao governo, tanto de quem insistiram na insuficiência das medidas anticrise, como de quem situaram a crítica na crise democrática de um executivo acusado de espionagem política, resultam absolutamente procedentes.

No entanto, se fizermos uma paralaxe analítica, isto é, um deslocamento na posição para observar estes acontecimentos, poderemos observar uma mesma lógica a atravessar o agir estatal em ambas as atuações. O estado-máquina atuando como um ente com vida própria. Desta focagem, veremos como a maquinaria burocrática do estado apenas tem uma aparência de neutralidade e as possibilidades reais de instrumentalização por parte de quem ostentar a sua direção política tem limites substanciais. E tais limites podemos observá-los, de forma complementar, tanto no balizamento das medidas do "Decreto anticrise" como nas implicações do "caso Pegasus".

Conservação da ordem social

No primeiro dos exemplos, o alcanço e capacidade transformadoras das medidas anticrise, observamos o mesmo processo que já tem acontecido com a aprovação de multitude de medidas sociais –do ingresso mínimo vital para a regulação do aluguer–, cuja posta em andamento, na prática e de forma mesmo contrária à vontade política, não consegue atingir os seus objetivos. O primeiro limite jurídico-administrativo com o que bate é a tupida rede de agências e organismos multinível com competências formais para influir na execução daquelas medidas, a atuarem como um autêntico funil e dificultarem a chegada à sociedade.

A espionagem e perseguição da dissidência política é a manifestação absoluta do princípio de autoconserva-ção polo qual o estado pode subverter a própria lei para a sua conservação

O segundo limite são as dependências competenciais destas agências e organismos, as suas composições e as suas finalidades a funcionarem como contrapesos, mas também, nesta mesma linha, podemos acrescentar a cultura burocrática, quer dizer, as práticas, inércias e rotinas constituídas, que as fazem funcionar conservadoramente. O terceiro limite é o jurídico-económico, pois, como já temos apontado com anterioridade, os limites economicistas -extra e intra-administrativos, bem como as supervisões e auditorias no controlo das despesas sob critérios de eficientismo, acaba por se traduzir habitualmente numa falta de meios técnicos e humanos que travam as possibilidades de uma intervenção, precisamente, eficaz.

Assim sendo, aquilo que interessa ressaltar é como o aparato jurídico-administrativo do estado está sempre configurado para a conservação e reprodução da ordem social existente. E, portanto, ele opera como uma sorte de oposição interna e autónoma às mudanças políticas, sociais e económicas, por pequenas que elas forem. Boa conta disto podem dar as diferentes tentativas de governos progressistas –forem estes do BNG, das Mareas, de EH Bildu, de ERC ou Podemos–.

Conquanto isto também não signifique negar qualquer possibilidade de mudança através do estado, mas, antes, apontar as suas resistências intrínsecas, o segundo dos exemplos, o "caso Pegasus", sim põe de manifesto os seus verdadeiros limites. A espionagem e perseguição da dissidência política é, pois, a manifestação absoluta do princípio de autoconservação polo qual, frente a qualquer ameaça aos consensos e legitimidades sobre que se justifica a ordem existente, o estado pode subverter a própria lei para a sua conservação.

Como disse a ministra espanhola de defesa, o que vai fazer o estado contra quem pretende atacar a ordem instituída? Defender-se. E mesmo à margem de quem ostentar a sua gestão política, o estado tem ressortes para atuar, até por fora da lei, para garantir a sua existência: garantir a vigência da ordem social de que ele mesmo emana. Eis os limites do estado, da democracia liberal e da política institucional.

Por isso, tomarmos a transformação da sociedade a sério é, em primeiro termo, assumirmos esta complexidade e, em segundo, pensarmos um jeito diferente de intervir social e politicamente. Eis o verdadeiro repto para a transformação social hoje.

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